terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dois poemas de Pablo de Rokha

 


GÊNIO E FIGURA
 
a Winétt
 
 
Sou como o fracasso total do mundo, oh Povos!
O canto frente a frente ao próprio Satanás,
dialoga com a ciência tremenda dos mortos,
e minha dor jorra de sangue sobre a cidade.
 
Meus dias ainda são restos de enormes móveis velhos,
essa noite “Deus” chorava entre mundos que vão
assim, minha menina, sozinhos, e tu dizes “te amo”,
quando falas com “teu” Pablo, sem nunca me ouvir.
 
O homem e a mulher têm cheiro de tumba;
meu corpo cai sobre a terra bruta
como o caixão amadeirado do infeliz.
 
Inimigo total, uivo pelos bairros
um espanto mais bárbaro, mais bárbaro, mais bárbaro
que o uivo de cem cães levados a morrer.
 
 
ESTÉTICA
 
1
O poema, como o cadeado, deve ser fechado; o poema, como a flor, ou a mulher, ou a cidade, é a entrada do homem; o poema, como o sexo, ou o céu.
 
2
Que o canto nunca se pareça com nada, nem com um homem, nem com uma alma, nem com um canto
 
4
O que canta a canção? Nada. A canção canta, a canção canta, não como o pássaro, mas como o canto do pássaro.
 
5
Certamente, ardem grandes mares vermelhos, e um sol de pedra, preto, por exemplo, aumenta a solidão astronômica com seu enorme fruto duro, talvez a terra seja um grande cristal triangular, outra vida e outro tempo gravitam; crescem, demonstram sua presença, afixados ​​à arquitetura que canta sua ordem inédita.
 
6
Colho um tomate, adquiro a velha moeda de outono, pego um cinema, vou organizando aquele beijo e aquele verso aninhado naqueles enormes cílios.
 
8
Construção de intuições? Construção de imagens, sim, construção de imagens, que são produtos quimicamente puros do não-inconsciente.
 
10
Escolha qualquer material, sim, qualquer material; porém, qualquer material determina a biologia do poeta, diagnostica-o; escolha qualquer material, como quem escolhe estrelas entre minhocas...
 
11
Porque existe um material autêntico, como a azeitona do solteiro, a torta de casado, ou o mesmo que o vinho dos dias chuvosos, que é o violão do calendário, e um material de fraude, de escárnio, que lembra as locomotivas no templo, o soldado que seduz com a espada as garças claras, gemendo por dentro aquelas violetas fartas de tempo e os pianos sem aura, a figueira que produz lírios.
 
12
Mas você trabalha exatamente com barro e com sonho...
 
13
Só a felicidade da andorinha depende da primeira gota d'água...
 
14
Quando Deus ainda estava azul dentro do homem...
 
16
Deixe o poema te fazer rir e chorar como uma loira ou um lindo cavalo.
 
17
E, além disso, que ele ria sozinho e chore sozinho, e chore sozinho como a mais morena das colegiais, tirando a blusa.
 
18
A canção, como o sonho, deve ser cruzada com larvas.
 
19
A música, como o mundo.
 
20
A música, como o gênio, tem que criar atmosfera, temperatura, medida do universo, ambiente, luz, que irradie de sóis pessoais.
 
21
Meio a meio da poesia, Tu, o mesmo que sexo, meio a meio.
 
Pablo de Rokha nasceu a 17 de outubro de 1894, Lincatén. Mais tarde, a expulsão do seminário em Talca, onde foi estudar, oportunizou a se mudar para Santiago, onde concluiu seus estudos, formou amizade com outros intelectuais da época e iniciou sua carreira literária, primeiro pelo ofício de jornalista em periódicos como La razón e La mañana; seus primeiros poemas saíram na revista Juventud e o primeiro livro de poesia, resultado do sentimento de que havia falhado em seus objetivos, aparece em 1916 ― Versos de infancia. Transitou por várias cidades do interior do Chile só regressou a Santiago em 1949 para acompanhar a esposa Winétt de Rokha num tratamento de câncer; a morte dela foi marcada na elegia “Fuego negro” e abriu um período de eventos trágicos na família, incluindo a morte de um filho por overdose e o suicídio de outro, três episódios que o afetaram profundamente ao ponto de tirar a própria vida a 10 de setembro de 1968. Juntamente com Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Gabriela Mistral é considerado um dos pilares da poesia chilena.
 
* Traduções de Pedro Fernandes

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