GÊNIO E FIGURA
a Winétt
Sou como o fracasso total do
mundo, oh Povos!
O canto frente a frente ao próprio Satanás,
dialoga com a ciência tremenda dos mortos,
e minha dor jorra de sangue sobre a cidade.
Meus dias ainda são restos de
enormes móveis velhos,
essa noite “Deus” chorava entre mundos que vão
assim, minha menina, sozinhos, e tu dizes “te amo”,
quando falas com “teu” Pablo, sem nunca me ouvir.
O homem e a mulher têm cheiro de
tumba;
meu corpo cai sobre a terra bruta
como o caixão amadeirado do infeliz.
Inimigo total, uivo pelos bairros
um espanto mais bárbaro, mais bárbaro, mais bárbaro
que o uivo de cem cães levados a morrer.
ESTÉTICA
O poema, como o cadeado, deve ser fechado;
o poema, como a flor, ou a mulher, ou a cidade, é a entrada do homem; o poema,
como o sexo, ou o céu.
Que o canto nunca se pareça com
nada, nem com um homem, nem com uma alma, nem com um canto
O que canta a canção? Nada. A
canção canta, a canção canta, não como o pássaro, mas como o canto do pássaro.
Certamente, ardem grandes mares
vermelhos, e um sol de pedra, preto, por exemplo, aumenta a solidão astronômica
com seu enorme fruto duro, talvez a terra seja um grande cristal triangular,
outra vida e outro tempo gravitam; crescem, demonstram sua presença, afixados
à arquitetura que canta sua ordem inédita.
Colho um tomate, adquiro a velha moeda
de outono, pego um cinema, vou organizando aquele beijo e aquele verso aninhado
naqueles enormes cílios.
Construção de intuições?
Construção de imagens, sim, construção de imagens, que são produtos
quimicamente puros do não-inconsciente.
Escolha qualquer material, sim,
qualquer material; porém, qualquer material determina a biologia do poeta,
diagnostica-o; escolha qualquer material, como quem escolhe estrelas entre
minhocas...
Porque existe um material
autêntico, como a azeitona do solteiro, a torta de casado, ou o mesmo que o
vinho dos dias chuvosos, que é o violão do calendário, e um material de fraude,
de escárnio, que lembra as locomotivas no templo, o soldado que seduz com a
espada as garças claras, gemendo por dentro aquelas violetas fartas de tempo e
os pianos sem aura, a figueira que produz lírios.
Mas você trabalha exatamente com barro
e com sonho...
Só a felicidade da andorinha
depende da primeira gota d'água...
Quando Deus ainda estava azul
dentro do homem...
Deixe o poema te fazer rir e
chorar como uma loira ou um lindo cavalo.
E, além disso, que ele ria sozinho
e chore sozinho, e chore sozinho como a mais morena das colegiais, tirando a blusa.
A canção, como o sonho, deve ser
cruzada com larvas.
A música, como o mundo.
A música, como o gênio, tem que
criar atmosfera, temperatura, medida do universo, ambiente, luz, que irradie de
sóis pessoais.
Meio a meio da poesia, Tu, o mesmo
que sexo, meio a meio.
* Traduções de Pedro Fernandes
O canto frente a frente ao próprio Satanás,
dialoga com a ciência tremenda dos mortos,
e minha dor jorra de sangue sobre a cidade.
essa noite “Deus” chorava entre mundos que vão
assim, minha menina, sozinhos, e tu dizes “te amo”,
quando falas com “teu” Pablo, sem nunca me ouvir.
meu corpo cai sobre a terra bruta
como o caixão amadeirado do infeliz.
um espanto mais bárbaro, mais bárbaro, mais bárbaro
que o uivo de cem cães levados a morrer.
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Pablo de Rokha nasceu a 17 de
outubro de 1894, Lincatén. Mais tarde, a expulsão do seminário em Talca, onde
foi estudar, oportunizou a se mudar para Santiago, onde concluiu seus estudos,
formou amizade com outros intelectuais da época e iniciou sua carreira
literária, primeiro pelo ofício de jornalista em periódicos como La razón
e La mañana; seus primeiros poemas saíram na revista Juventud e o
primeiro livro de poesia, resultado do sentimento de que havia falhado em seus
objetivos, aparece em 1916 ― Versos de infancia. Transitou
por várias cidades do interior do Chile só regressou a Santiago em 1949 para
acompanhar a esposa Winétt de Rokha num tratamento de câncer; a morte dela foi
marcada na elegia “Fuego negro” e abriu um período de eventos trágicos na
família, incluindo a morte de um filho por overdose e o suicídio de outro, três
episódios que o afetaram profundamente ao ponto de tirar a própria vida a 10 de
setembro de 1968. Juntamente com Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Gabriela
Mistral é considerado um dos pilares da poesia chilena.
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