terça-feira, 17 de novembro de 2020

Quatro poemas inéditos de João Cabral de Melo Neto

 


A BAUDELAIRE
 
Sempre me perguntei e pergunto:
como dos falsos paraísos
podias regressar aos poemas
tão recortados e precisos?
 
Talvez, diante da folha em branco
te olhava branco esse inimigo
que o homem leva no mais fundo
e o julga com o olhar mais frio.
 
Ele te levava a sujá-la,
a enodoá-la, até a cuspi-la,
além do que então tolerável.
Ele é que te dava essa azia
 
que lembra estômago vazio,
lembra fomes, sedes adiadas,
tudo o que dá a lucidez,
essencial, a quem fala em facas.
 
 
A MARIA LEONTINA
 
Tua mão fazia a pintura
com o que foge na música.
 
Fosses viva, pedir-te-ia
tua receite, que não dizias,
 
porque eras leve e calada
e a palavra te devia ser pesada,
 
a receite de teu fazer tênue,
sem apoio, no ar, extremo.
 
Como o equilibrista que sabe
andar entre o ar e a gravidade,
 
assim sabia tua mão
mover-se entre o sim e o não,
 
fazer-se servir com a delicadeza
além do mistério e das trombetas
 
fazendo ver aquele ouvir
musical, quase sem sentir.
 
 
RETRATO DE PICASSO VESTIDO DE CAÇADOR
 
Pintar, repintar, sempre em volta
da coisa: como buscando outra
(não é possível que haja coisa
que atingir se ele quer não possa).
 
Talvez um alvo nem exista
(mas mais vezes, não dá na vista).
Quem sabe é o ponto de partida
da caçada que quer, vazia?
 
Por mim, imaginar não posso
caça imune ao fuzil dos olhos,
a esse fuzil de duplo foco
que me aponta de suas fotos.
 
Um tal fuzil não poderia
errar, querendo-o, a pontaria.
Se atirava ao redor do que via,
é que caçar, não caça, visa.
 
 
O SUICÍDIO LIMPO
 
Poder comer com gesto claro!
O de alguém que diante da bacia,
como que um qualquer de mãos
se enxugasse da própria vida?
 
Nos nossos dias são capazes.
É outra a espécie dos suicidas.
Morrem em tragédia ou comédia.
São das famílias dos artistas.
 
O gesto de matar-se é o Gesto.
E no palco em que se executam,
muito embora pareça o tranquilo
partir-se para vilegiatura,
 
ele é o só gesto que perdura,
que conservarão as retinas,
que usadas de ver tantas mortes
nunca as veem como rotina.
 
João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920 no Recife. Publicou seu primeiro livro de poemas Pedra do sono em 1942; a partir de então seguiu-se títulos como O engenheiro (1945), O cão sem plumas (1950), O rio (1954), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966), Morte e vida severina e outros poemas em voz alta (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Agreste (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilla andando (1989), entre outros. Morreu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro. 

* Estes poemas foram publicados na Poesia completa (Alfaguara, 2020).
 
 

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