terça-feira, 24 de novembro de 2020

Dois poemas de Salette Tavares




AQUI ESTOU
 
Aqui estou, no encontro dos caminhos
no sítio onde os olhares se dobram de terror...
Quando a minha voz disse não e a vontade e o espelho
havia acordo e sonho e flores para abrir.
Quando as minhas mãos escorriam de ternura
havia liberdade e os meus pés descalços
recortavam em sombra a única lisura.
 
Que lindo o que eu sonhei, que paz e que mistério
que grande força sem lágrimas no mar...
Agora estou dorida, morreram-me os cabelos
nos dedos que pediam caiu uma agonia,
as cordas já cortadas tornaram a me ligar. 
Na noite que me seque eu quisera sorver
toda a ausência direta do possuir e do ter,
fugida na floresta escondida na giesta
morder aquela terra fecunda em que me sei. 
Sem luta, a navegar, um barco branco e meu
sem timoneiro nem rota marcando-me o destino
singrando sob a lua, bebendo o sol dos dias
tão só e o grande olhar de Deus,
deitado ao pé de mim.
 
Assim correr, ser livre, criar e ter prazer
aquele só prazer igual ao que já sou
uma lira, um canto, uma harmonia enfim
serena, bela, doce e sem violência louca. 
Idade duma rosa colhida na manhã
vibrando no calor as pétalas a abrir
surpresa vegetal da vida que se inflama
com o caule cortado e sem poder sorrir.
 
Quem livre me deixasse dormir na minha planta
este acordo supremo dos membros do amor,
sem traição, sem corte, e só aquele manso
sorver da terra a seiva para poder florir. 
Ai, mar em que me banho e que livre me deixas
miragem do meu ritmo, partida para além
meu doce só saber braços, pernas, seios, beijos,
e toda a maravilha de ser sem mais ninguém.
 
 
ESPELHO CEGO

Eu leio o meu destino nos jornais.
Eu vejo os Signos do Domingo nos chifres do Carneiro
e creio
no regaço em que me leva algum planeta
a jogar no firmamento.
 
Osíres, ou sol da noite, ou estrela da terra
a vida é essa
que se esculpe na alma do poeta,
em ronde bosse,
                               em corpo inteiro...
e as mãos cegas
são só para saber mais devagar.
Minha cintura dorida
                               adeus supremo sem beijo
enche-me o peito de fome
                geme silêncio o desejo.
Espreme-me frutas os braços
                               bebem-se vinho de março
grandes belos cabelos
                               com o vento no regaço
Alvorecer de um segredo
                               boca que a fruta pede
mar de ouro generoso
                               onde o meu barco se perde.
 
 
Salette Tavares nasceu no ano de 1922 em Moçambique. Fez seus estudos em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Lisboa. Participou nos primeiros cadernos de Poesia experimental. Sua obra marca um período importante desta forma na década de 1960 portuguesa ao lado de nomes como E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly, António Aragão, entre outros. Publicou títulos como Espelho cego (1957), Concerto em Mi Maior para clarinete e bateria (1964), Quadrada (1967) e Lex Icon (1971). Morreu em 1994.
 

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