terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Três poemas de Leonor de Almeida




RESGATE
 
Deixou-me no umbral da porta
como uma árvore cansada de inverno
 
O meu olhar lançava apelos sem endereço
e a carne escorria um suor de expatriada
arrefecendo em cubos de desolação
 
Na atmosfera mumificada
um vento de inutilidade
espalhava sementes de nostalgia
bifurcando os caminhos de aridez
 
E na asfixia da grande ausência
a minha morte alongava-se em mim
 
Mas sexos de vivíparas abriram-se no poente
e meus passos descolaram a viscosa passividade
 
Das bandeiras de guerra nasceram plumas brancas!
 
Tu vieste com esse vinho de rosas e urtigas
e cada dia desenho uma nova cabeça no meu regaço
 
Tu vieste
e meu sangue é a manhã que nunca acaba!
 
Degelo meus dedos e procuro carícias nos astros
para ti meu prémio de vitória
ou meu prémio de derrota
minha terceira asa
minha visão suplementar
Contigo flutuo numa interminável infância!
 
É preciso partir
Retiro o peso dos meus seios da concha do teu ventre
e que o pânico dos prazeres cesse no teu rosto
Partamos!
Meus anjos ambulantes traçam marcos no ar
para ser fácil e certa a viagem
 
Quero multiplicar o Espaço e enchê-lo de Amor
procurar os homens que não tiveram vida
e salvá-los!
 
 
ELEGIA
 
Não ignores a noite, poeta,
e seu hálito estranho que amadurece as luas,
os livros de silêncio que abrem as estrelas,
as profecias escutadas no brilhar dos poços...
 
Não ignores a noite, poeta,
e a forma carnal que a escuridão toma cada sítio,
e o peso dos cheiros, rolando bem musculado,
nos rios vegetais que barram os caminhos,
o mundo das aves confusas que faz florir o espaço
e se vai aninhar entre as brisas coalhadas...
 
Não ignores a noite, poeta,
e seus peixes de sono deslizando entre os ombros das pedras,
as cicatrizes de luz que o sol deixa nas árvores prisioneiras,
as dálias de sangue que os pastores tecem nas cabanas vazias...
 
Não ignores a noite, poeta,
e as canções que a água reparte crucificada nos ramos do céu,
e os sonhos puros dos animais contentes de sémen e de terra!...
 
 
ALARME
 
Aceno ao meu povo
com o lenço branco de sempre.
 
Mas hoje venho matar
todas as crianças
depor-lhes a nuca no beijo eterno das pedras.
Acabar
o jogo do homem contra o poderoso
sob os duros cascos do Tempo.
Acabar
a propagação da carne para maxilas do deserto.
Acabar
a História e seus desenhos de carcaças ocas
em galhos de cólera!
 
Não nasça mais o filho do Homem,
que abutres moribundos escondem o sol
e o mar quebrou os ponteiros do infinito!

 
 
Leonor de Almeida nasceu no Porto a 25 de abril de 1905. Entre os anos 1940 e 1950 colaborou com os principais jornais e revistas de Portugal e chegou a ter sua obra lida e exaltada pelos nomes mais importantes da crítica literária de então, constituindo-se como um “dos casos mais extraordinários da poesia moderna”. Misteriosamente, o seu nome rareia entre os poetas e mesmo sua obra fica esquecida, voltando ao interesse e debate apenas quase meio século depois da sua morte. Sabe-se que viveu em Londres, Paris, Copenhague, mas não se sabe ao certo a data de maio de 1983, quando morreu em Lisboa. A obra de Leonor de Almeida compreende quatro livros de poesia antes de o seu rasto se perder: Caminhos frios (1947), Luz do fim (1950), Rapto (1953) e Terceira asa (1960). Esses livros foram reeditados numa antologia intitulada Na curva escura dos cardos do tempo (2020).

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