quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Três sonetos de Maria Lúcia Alvim

 


 
SOMATIZAÇÃO DO SONETO
 
O Amor está na cara: em carne viva.
Há uma porta batendo sem parar.
Palavras entram. Saem. Persuasiva,
a Loucura preserva seu lugar.
 
Soprarei o humor desta ferida
aberta para só me ver sangrar.
Há um golpe de ar em minha vida.
uma quina de esquina: quebra-mar.
 
Visito. Se me vou. Irei voltar?
Entre papéis colados, sob medida,
há sempre uma paixão a recortar.
 
E o colo lembra a glosa, par a par.
Contraditória Rosa, assim perdida,
que te expulsa e te trava, devagar.
 
 
AMOR
 
Este pobre animal que se derrama
Entre tufos de sedas e suspiros,
Não tem corpo nem alma ― sua chama
É um leque de sombra sobre lírios.
 
Inútil procurá-lo pela cama
Tal como um pensamento conhecido ―
Ou testá-lo no pelo que se inflama
Contra a pele sem cor e sem sentido.
 
Vem do ar ou das águas represadas?
Tem o tino da flor, zelo de lua,
Ou apenas a forma imaginária?
 
Ah, deixa que te sangrem as espadas,
E deita sobre a pedra, e continua
Esse mover de asa procelária.
 
 
SONETO ENTRE SÚPLICAS
 
Um pombo que arrulhava, arrulhava.
O abandono. A baba que escorria.
Um lobo que espumava, que espumava.
Tu me ferindo, fada ― eu te premia.
 
Os canteiros enxutos, quem regava?
Os viveiros vazios? Explodia.
Entre cachos, espasmos, exultava
a fera, que ferida, me sorria.
 
Se fui tua criança, teu falcão,
em momentos fugazes, sorrateiros,
(por mais que me pratique a solidão,)
 
― te juro, meu amor, fomos inteiros
em tudo que te peço: irmã, irmão,
e de tudo provamos: os primeiros.
 
 
Maria Lúcia Alvim nasceu a 4 de outubro de 1932, em Araxá, Minas Gerais. Cedo se fez autodidata interessada em artes plásticas e literatura. Realizou algumas exposições e publicou seis livros. Sua estreia literária foi com a publicação de XX sonetos (1959). Depois deste livro, vieram outros cinco títulos: Coração incólume (1968) e Pose (1968), Romanceiro de Dona Beja (1975); A rosa malvada (1980); e o recente Batendo pasto (2020). Parte dessa produção poética foi reunida na antologia Vivenda (1989), na prestigiada coleção Claro Enigma. Morreu a 3 de fevereiro de 2021, onde vivia em Juiz de Fora, em decorrência de complicações pela Covid-19.

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