TANTAS CIDADES A QUE DEVÍAMOS
TER IDO
O nosso sonho é feito de cidades
cultas,
com música e cafés familiares,
a majestade de um porto e estações
de ferro e de vidro com comboios brunidos pela noite
e pela chuva, a mesma chuva
que nos acompanha num pequeno hotel
ou nas janelas de um museu.
Há recantos ao abrigo de grandes árvores,
gente calada, educada e bem vestida
e as silenciosas livrarias
onde os olhos vagueiam enquanto cai a tarde.
Tantas cidades a que devíamos ter
ido, meu amor.
A lua emerge para lá daquelas pontes de ferro
dos anos que mudaram a nossa lei.
Desde então o tempo é uma chuva
que nos inunda como inunda os telhados.
Mas na luz do pátio vemos os templos
de mármore branco e dourado travertino.
Encontramos, nas ruas de pequenas aldeias,
faustosos estuques cor de terra
esgrafiados pelo vento. Esta casa
da varanda e do pátio tem uma luz
de conversas e conforto. De nós,
aquele que ficar terá por companhia
a memória do cipreste e das heras
até nos reencontrarmos nas cidades do sonho.
MÃE RÚSSIA
Era o Inverno de sessenta e dois:
o candeeiro aceso na cabeceira da cama
não se apagava até ser desvanecido,
na alvorada, pelo rumor da claridade.
Foi quando incansavelmente li Tolstoi:
enquanto um cão ladrava nalgum pátio,
eu imaginava, no bosque, um fabuloso
passeio em trenós por sob a noite.
Nevava em Barcelona naquele Inverno.
Caladamente nos foram envolvendo
os flocos de neve como uma grande vitrina,
e ao chegar o bom tempo, com o degelo,
tu já tinhas para mim, Raquel,
o rosto claro de uma Anna Karénina.
NÃO DEITES FORA AS CARTAS DE AMOR
com música e cafés familiares,
a majestade de um porto e estações
de ferro e de vidro com comboios brunidos pela noite
e pela chuva, a mesma chuva
que nos acompanha num pequeno hotel
ou nas janelas de um museu.
Há recantos ao abrigo de grandes árvores,
gente calada, educada e bem vestida
e as silenciosas livrarias
onde os olhos vagueiam enquanto cai a tarde.
A lua emerge para lá daquelas pontes de ferro
dos anos que mudaram a nossa lei.
Desde então o tempo é uma chuva
que nos inunda como inunda os telhados.
Mas na luz do pátio vemos os templos
de mármore branco e dourado travertino.
Encontramos, nas ruas de pequenas aldeias,
faustosos estuques cor de terra
esgrafiados pelo vento. Esta casa
da varanda e do pátio tem uma luz
de conversas e conforto. De nós,
aquele que ficar terá por companhia
a memória do cipreste e das heras
até nos reencontrarmos nas cidades do sonho.
MÃE RÚSSIA
o candeeiro aceso na cabeceira da cama
não se apagava até ser desvanecido,
na alvorada, pelo rumor da claridade.
Foi quando incansavelmente li Tolstoi:
enquanto um cão ladrava nalgum pátio,
eu imaginava, no bosque, um fabuloso
passeio em trenós por sob a noite.
Nevava em Barcelona naquele Inverno.
Caladamente nos foram envolvendo
os flocos de neve como uma grande vitrina,
e ao chegar o bom tempo, com o degelo,
tu já tinhas para mim, Raquel,
o rosto claro de uma Anna Karénina.
NÃO DEITES FORA AS CARTAS DE AMOR
O ruído frio da cidade nos vidros
Não tenhas piedade do que foste,
porque a piedade é demasiado breve:
não dá tempo para construir nada.
De noite, num pequeno aeroporto,
vês um avião que vai subindo.
Vai-se perdendo o sinal.
E convences-te de que vives
uma época que, sem esperança,
é já a mais feliz da tua vida.
Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há uma outra música.
A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.
•
Joan Margarit i Consarnau nasceu a
11 de maio de 1938 em Sanaüja (Segarra, Catalunha). Viveu a infância e
adolescência entre Barcelona, Rubí, Figueres, Girona e Tenerife. Formou-se em
arquitetura e fez carreira acadêmica na Escola Técnica Superior de Arquitetura
em Barcelona. Autor de vasta obra, sua poesia foi organizada em 2020 em Tots
els poemes (1975-2017). Ao longo de sua carreira acumulou vários
prêmios, entre eles o Prêmio Ibero-americano de Poesia (2017), o Prêmio Reina
Sofía de Poesia (2019) e o Prêmio Cervantes (2019). Joan Margarit morreu a 16
de fevereiro de 2021.
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