segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Dois poemas de Fiódor Sologub



Eu amo o meu chão obnubilado,
E, no prenúncio da eterna despedida,
Não aceito apenas o que é dado
De bom, mas, mansamente, as feridas.

Nada há que recusar à criação -
Pois em tudo há exultante alegria,
No sonhar há uma grande razão,
Há ressaca na árdua porfia.

Ao Espírito magno me inclino,
E no Pai o meu ser se confunde,
Sua criação é tão variegada
E a mim, até o uno é negado!

5 de agosto de 1896

* Tradução de Aurora Fornoni Bernardini


Classificados

Precisam-se de médicos e de enfermeiras.
Assim anunciam os jornais
Precisam-se de alfaiates e de modistas
Quem precisa de poetas?

Onde encontrar um aviso que diga:
"Precisamos de poeta em domicílio
Porque se tornou intolerável
Explicar-se em linguagem comum.

Precisamos de palavras bonitas
Estamos dispostos a entregar nossas almas".
Desejo comprar fazendas.
Precisam-se de vacas leiteiras.

23 de fevereiro de 1916.

* Versão a partir da tradução em língua espanhola de Jorge Bustamante García.


Fiódor Sologub nasceu em 1863, em São Petersburgo e morreu em 1927. Ele foi um dos expoentes do simbolismo russo, que floresceu no início do século XX. Sua obra começou a ser publicada em almanaques na década de 1880, mas foi o ano de 1896 que marcou o início de sua carreira, quando três de seus livros foram publicados: Poemas, o romance Sonhos maus e o livro Sombras: contos e versos

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Quatro poemas de Henriqueta Lisboa




Os lírios

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos — perfeitos! —
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranquila.


Divertimento 

O esperto esquilo
ganha um coco.
Tem olhos intranquilos
de louco.
Os dentes finos
mostra. E em pouco
os dentes finca
na polpa.
Assim, com perfeito estilo,
sob estridentes
dentes,
o coco, em segundos, fica
todo oco.

Noturno 

Meu pensamento em febre
é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,
à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas
em redor do fogo.


Amargura

Eu chegarei depois de tudo,
mortas as horas derradeiras,
quando alvejar na treva o mudo
riso de escárnio das caveiras.

Eu chegarei a passo lento,
exausta da estranha jornada,
neste invicto pressentimento
de que tudo equivale a nada.

Um dia, um dia, chegam todos,
de olhos profundos e expectantes.
E sob a chuva dos apodos
há mais infelizes do que antes.

As luzes todas se apagaram,
voam negras aves em bando.
Tenho pena dos que chegaram
e a estas horas estão chorando...

Eu chegarei por certo um dia...
assim, tão desesperançada,
que mais acertado seria
ficar em meio à caminhada.

Henriqueta Lisboa nasceu em Lambari, em 15 de julho de 1901. Publicou vários ensaios, livros para crianças e poemas; estes últimos em títulos como Fogo fátuo, seu primeiro livro. Traduziu os Cantos, de Dante Alighieri e parte da obra de Gabriela Mistral organizada na antologia Poemas escolhidos.  Pela sua obra recebeu o Prêmio Machado de Assis. Morreu em 9 de outubro de 1985 em Belo Horizonte. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Três poemas de Adalgisa Nery




Poema natural

Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.


Mistério

Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranquilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.


Escultura

Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...

• 
Adalgisa Nery nasceu em 29 de outubro de 1905 no Rio de Janeiro. Escreveu vasta obra que inclui romances, contos e crônicas. Em poesia publicou Ar do deserto (1943), Cantos de angústia (1948), As fronteiras da quarta dimensão (1952), Mundos oscilantes (1962) e Erosão (1973). Morreu em 7 de junho de 1980.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Um poema de Evguêni Baratýnski



O caminho da vida

No caminho da vida, ao dotar
seus filhos, insensatos,
de sonhos d'ouro, a sorte benfazeja
dá-nos um tesouro.
Lestos, os anos repentinos
de um lugar a outro nos transportam,
e com aqueles sonhos e lances
fatais da vida, nós pagamos.

1825


Eveguêni Baratýnski nasceu em 1800 e morreu em 1844. Tornou-se amigo de Púchkin e foi por este admirado e descrito como “um poeta festivo e languidamente melancólico”. Filho de um general reformado que fez parte do séquito de Paulo I, na infância aprendeu italiano e francês. Aos 12 anos, ingresso no Corpo de Pajens de Petersburgo, prestigiosa escola militar imperial, de onde foi expulso em 1812, por mau comportamento, e proibido de servir, a não ser como soldado raso. Só em 1825 conseguirá uma patente, mas depois de seu envolvimento com os dezembristas, largou a vida militar e mudou-se para Moscou, onde se casou com a filha de um general abastado. Foi nesta ocasião que publicou sua primeira antologia poética (em 1827) e o poema narrativo O baile (1825-28), um retrato mais naturalista da sociedade moscovita; além desses títulos também escreveu Crepúsculo (1842). 

* Tradução de Aurora Fornoni Bernadini.