terça-feira, 27 de abril de 2021

Três poemas de Francisco Brines

 

O DESTINO NÃO É UM LUGAR
 
O caminho foi longo e houve névoa.
Porém, houve o espaço. Mas agora
adensou-se a névoa até ao ponto
de ser o espaço o muro que já roço.
Nele me deterei e, ao voltar
os olhos para trás, a mesma névoa
far-me-á tentar de novo o mesmo muro,
e, se eu dirigir o olhar ao céu
para ali me salvar, a negra névoa
irá cegar-me os olhos, e assim será
isso a que chamaste sono eterno.

 
SUCESSÃO DE MIM MESMO
 
E ardente o passado, e impossível:
breve noite de amor comigo mesmo.
F.B.
 
Ao vento do jardim
a cama está revolta de lençóis e luar,
e neles está o corpo solitário e despido.
Velam os olhos, nas sombras do pinheiro prateado, na hera dos muros,
na vida furtiva das estrelas.
 
Um vulto juvenil vem da penumbra
e subiu sem roupas a meu leito,
e na tarefa do amor completa
esta noite tão breve.
Este mudo rapaz está aceso
de uma paixão escura e afastada,
e seus dentes furiosos, sua língua dulcíssima
resgatam de minha carne a densidade do tempo.
No acaso do mundo sua vida voltou
com revoltos cabelos, e hoje mudo,
e penetrou depois pelas portas da noite.
 
Sobre a varanda, espio
ele chegar à esquina da casa,
e ali permaneceu na face da primeira luz.
Com o sol e os pássaros o dia faz-se longo,
na esquina o rapaz já é este mudo ancião que olha da varanda,
ali onde ele se olha com um corpo ainda robusto e fatigado.
Extinta juventude, vida perdida em que cova de sombras atirar as palavras?

 
PROJECTO DE VIDA ETERNA
 
E depois de acabar, voltar ao mundo
após uma curta eternidade, já sereno
voltar de novo ao mundo, a este que sei,
com uma repetida juventude, e junto a mim
seu corpo como fora em sua idade de ouro
perdida, e assim admitir que a vida é infindável
como não pôde ser (agora já eterna),
porque houve um adeus, e o tempo envelhecia
não o tempo, que em si é sempre eterno,
mas o que ele tocava: o mundo,
e aquele que, por sabê-lo, mais sofria.
 
O Mais Formoso Território
O cego desejo percorre com os dedos
as linhas venturosas que inebriam seu tacto,
e nada o apressa. O roçar faz-se lento
no vigor curvado de umas coxas
que encontram sua unidade em breve moita perfumada.
Ali, na escura luz dos mirtos,
enreda-se, palpitante, a asa de um gorrião,
o feliz corpo vivo.
Ou o íntimo de um caule e uma rosa, na sebe,
no pousar fatigado de um ocaso apagado.
 
Do estreito lugar da cintura,
reino de sesta e sono,
ou reduzido prado
de lábios delicados e dedos ardentes,
por igual, separadas, espreguiçam-se linhas
que afundam, graciosas, o vigor feliz da idade,
e deixam alto um peito, simétrico e escuro.
São duas sombras róseas esses mamilos breves
em vasto campo liso,
águas para beber ou fazê-las tremer.
E um fino canal sulca, para a sede benévola da língua,
um campo adormecido, e chega a um breve poço,
que é sorriso infantil,
breve dedal no ar.
 
Nessa rectidão de uns ombros potentes e sensíveis
ergue-se o pescoço altivo que serena,
ou o retraído pescoço a abrandar as carícias,
o tronco de onde brota um vivo fogo negro,
a cabeça: e no ar e perfumado,
sorri um enredado tufo de jasmins,
e o mundo faz-se noite porque habitam aquela
astros cheios e vastos, felizes e benéficos.
E brilham e nos fitam, e queremos morrer
ébrios de adolescência.
Há uma brisa negra que perfuma os cabelos.
 
Eu desci este torso,
a mais descansada de todas as descidas,
que, sendo longa e dura, é de marcha serena,
pois nos conduz ao lugar das delícias.
Na seda mais fresca e mais suave
a mão recreia-se,
neste espaço indizível, que se ergue tão diáfano,
a formosura caluniada, o sítio envilecido
por palavras soezes.
Leito infindável onde reparamos
a sede da beleza da forma,
que é sede apenas de um deus que nos sossegue.
Roço com minhas faces a própria pele do ar,
a dureza da água, que é frescura,
a solidez do mundo que me tenta.
 
Muito secretas, as ladeiras levam
ao lugar aceso da ventura.
Ali o fundo gozo que o viver fortalece,
a realidade magica que vence até o sonho,
experiência tão ébria
que um sábio deus a condena ao olvido.
Conhecemos então que tem morte somente
a queimada formosura da vida.
 
E porque estás ausente, és hoje o desejo
da terra que falta ao desterrado,
da vida que o olvidado perde,
e apenas por engano está a vida em meu corpo,
pois sei que a minha vida a sepultei no teu.
 

 
Francisco Brines nasceu a 22 de janeiro de 1932. Nome de destaque na chamada Geração de 50, compôs uma obra que se destaca como continuadora da tradição poética forjada por nomes como Luis Cernuda e Constantino Kaváfis. Cursou Direito nas universidades de Deusto, Valencia e Salamanca; Filosofia e Letras em Madri. Foi professor de literatura espanhola nas universidades de Cambridge e Oxford. Sua estreia como poeta foi com o livro “Las brasas”, em 1959, premiado com o Adonais e reconhecido seu melhor trabalho; depois deste vieram títulos como “Palabras en la oscuridad” (1966), “Insistencias en Luzbel (1977) e “A última costa” (1995) — este último traduzido em Portugal. Em 2001, foi eleito para a Real Academia Espanhola. Dos vários prêmios importantes recebidos estão o Prêmio Rainha Sofía de Poesia Ibero-americana em 2010 e o Prêmio Cervantes, em 2020. Francisco Brines morreu no dia 20 de maio de 2021.
 
* Traduções de José Bento

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