A ESTRELA DA MANHÃ
O homem só se levanta que o mar
inda é escuro
e as estrelas vacilam. Um mormaço de alento
sobe reto das orlas, do leito do mar,
abrandando o respiro. Esta é a hora em que nada
acontece. O cachimbo entre os dentes também
cai sem brilho. Noturno é o som do marulho.
O homem só acendeu uma fogueira de galhos
e a observa dourar o terreno. Até o mar
daqui a pouco estará como o fogo, candente.
Não tem coisa mais acre que a aurora
de um dia
em que nada haverá. Não tem coisa mais acre
do que a inutilidade. Cansada no céu
pende a estrela azulada, colhida na aurora.
Olhar o mar inda escuro e mancha de fogo
onde o homem, que não faz mais nada, se aquece;
olha e cai de sono entre as foscas montanhas
onde há um leito de neve. O arrastado das horas
é inclemente com quem já não espera mais nada.
Vale a pena que o sol se levante
do mar
e essa longa jornada comece? Amanhã
voltará a morna aurora e seu brilho diáfano
e será que nem ontem e mais nada haverá.
O homem só gostaria de apenas dormir.
Quando a última estrela se apaga no céu,
o homem lento prepara o cachimbo e o acende.
9-12 de janeiro de 1936
DEPOIS
A colina se estende e uma chuva a
encharca em silêncio.
Chove sobre os telhados: a estreita
janela
é tomada de um verde mais fresco e mais puro.
Ao meu lado, deitada, a amiga: à janela,
um vazio, e ninguém nos olhava, e estávamos nus.
O seu corpo secreto caminha, a esta hora, na rua
com seu passo num ritmo mais lento; e a chuva
desce como esse passo, suave e cansada.
Minha amiga não nota a colina despida
que adormece no charco: caminha na rua
e as pessoas que a esbarram não sabem.
De noite
a colina é varrida por trapos de névoa,
e a janela recolhe os seus sopros. A rua
a esta hora é um deserto; somente a colina
tem uma vida remota no corpo mais cavo.
Nós jazíamos, lassos, no sopro molhado
dos dois corpos, deitados no sono, enlaçados.
Numa tarde mais doce, de tépido sol
e de cores viçosas, a rua seria uma festa.
É gostoso passar pela rua, gozando
a memória do corpo, mas tudo difuso ao redor.
Na folhagem das ruas, no passo indolente das moças
e nas vozes de todos há um pouco da vida
que os dois corpos perderam, mas que é um milagre.
Descobrir lá no fundo da estrada a colina
entre as casas e vê-la passar que ali mesmo
minha amiga a contempla da estreita janela.
Mergulhou no brumoso essa pura
colina
e o chuvisco sussurra. Está ausente a amiga
que levou com doçura o seu corpo e o sorriso.
Amanhã, no céu claro e lavado da aurora,
minha amiga andará pelas ruas, suave
em seu passo. Podemos nos ver, se quisermos.
1934
A NOITE
Mas a noite de ventos, a límpida
noite
que a lembrança roçava de leve, é remeta,
é lembrança. Perdura uma calma aturdida,
um sossego de folhas e nada. Do tempo
que ultrapassa a lembrança só resta um difuso
relembrar.
Certas vezes retorna no dia,
numa imóvel clareza de um dia de estio,
esse espanto longínquo.
Da janela vazia
o menino mirava as colinas na noite,
frias e negras, e olhava espantado o maciço:
vaga e límpida imobilidade. Entre as folhas
farfalhando no escuro, surgiam os cerros
onde todas as coisas do dia, as encostas
e os vinhedos e o verde, eram claras e mortas
e o viver era um outro, de vento, de céu
e de folhas, de nada.
E às vezes retorna
no sossego parado de um dia a lembrança
dessa vida alheada na luz espantosa.
16 de abril de 1938
MANHÃ
A janela entreaberta contém um rosto
sobre os campos do mar. Os cabelos vagos
acompanham o terno balanço do mar.
Já não há mais lembranças sobre
este rosto.
Só uma sombra fugaz, como fosse uma nuvem.
A sombra é úmida e doce como a da areia
de uma intacta caverna, sob o crepúsculo.
Já não há mais lembranças. Só um sussurro
que a voz desse mar tornada lembrança.
No crepúsculo a água mole da
aurora
que se banha de luz resplandece a face.
Cada dia é um milagre sem tempo
sob o sol: uma luz salgada o recobre
com um vivo sabor de fruto marinho.
Não existe lembrança sobre este
rosto.
Não existe palavra que o contenha
ou disponha entre as coisas passadas. Ontem,
dessa breve janela sumiu-se como
sumirá num instante, sem mais tristeza
ou palavra humana, do campo do mar.
9-18 de agosto de 1940
* Traduções de Maurício Santana
Dias, publicadas inicialmente na revista Magma.
e as estrelas vacilam. Um mormaço de alento
sobe reto das orlas, do leito do mar,
abrandando o respiro. Esta é a hora em que nada
acontece. O cachimbo entre os dentes também
cai sem brilho. Noturno é o som do marulho.
O homem só acendeu uma fogueira de galhos
e a observa dourar o terreno. Até o mar
daqui a pouco estará como o fogo, candente.
em que nada haverá. Não tem coisa mais acre
do que a inutilidade. Cansada no céu
pende a estrela azulada, colhida na aurora.
Olhar o mar inda escuro e mancha de fogo
onde o homem, que não faz mais nada, se aquece;
olha e cai de sono entre as foscas montanhas
onde há um leito de neve. O arrastado das horas
é inclemente com quem já não espera mais nada.
e essa longa jornada comece? Amanhã
voltará a morna aurora e seu brilho diáfano
e será que nem ontem e mais nada haverá.
O homem só gostaria de apenas dormir.
Quando a última estrela se apaga no céu,
o homem lento prepara o cachimbo e o acende.
é tomada de um verde mais fresco e mais puro.
Ao meu lado, deitada, a amiga: à janela,
um vazio, e ninguém nos olhava, e estávamos nus.
O seu corpo secreto caminha, a esta hora, na rua
com seu passo num ritmo mais lento; e a chuva
desce como esse passo, suave e cansada.
Minha amiga não nota a colina despida
que adormece no charco: caminha na rua
e as pessoas que a esbarram não sabem.
a colina é varrida por trapos de névoa,
e a janela recolhe os seus sopros. A rua
a esta hora é um deserto; somente a colina
tem uma vida remota no corpo mais cavo.
Nós jazíamos, lassos, no sopro molhado
dos dois corpos, deitados no sono, enlaçados.
e de cores viçosas, a rua seria uma festa.
É gostoso passar pela rua, gozando
a memória do corpo, mas tudo difuso ao redor.
Na folhagem das ruas, no passo indolente das moças
e nas vozes de todos há um pouco da vida
que os dois corpos perderam, mas que é um milagre.
Descobrir lá no fundo da estrada a colina
entre as casas e vê-la passar que ali mesmo
minha amiga a contempla da estreita janela.
e o chuvisco sussurra. Está ausente a amiga
que levou com doçura o seu corpo e o sorriso.
Amanhã, no céu claro e lavado da aurora,
minha amiga andará pelas ruas, suave
em seu passo. Podemos nos ver, se quisermos.
que a lembrança roçava de leve, é remeta,
é lembrança. Perdura uma calma aturdida,
um sossego de folhas e nada. Do tempo
que ultrapassa a lembrança só resta um difuso
relembrar.
numa imóvel clareza de um dia de estio,
esse espanto longínquo.
o menino mirava as colinas na noite,
frias e negras, e olhava espantado o maciço:
vaga e límpida imobilidade. Entre as folhas
farfalhando no escuro, surgiam os cerros
onde todas as coisas do dia, as encostas
e os vinhedos e o verde, eram claras e mortas
e o viver era um outro, de vento, de céu
e de folhas, de nada.
no sossego parado de um dia a lembrança
dessa vida alheada na luz espantosa.
sobre os campos do mar. Os cabelos vagos
acompanham o terno balanço do mar.
Só uma sombra fugaz, como fosse uma nuvem.
A sombra é úmida e doce como a da areia
de uma intacta caverna, sob o crepúsculo.
Já não há mais lembranças. Só um sussurro
que a voz desse mar tornada lembrança.
que se banha de luz resplandece a face.
Cada dia é um milagre sem tempo
sob o sol: uma luz salgada o recobre
com um vivo sabor de fruto marinho.
Não existe palavra que o contenha
ou disponha entre as coisas passadas. Ontem,
dessa breve janela sumiu-se como
sumirá num instante, sem mais tristeza
ou palavra humana, do campo do mar.
•
Cesare Pavese nasceu a 9 de setembro
de 1908, em Santo Stefano Belbo. Estudioso da obra de Walt Whitman, foi tradutor
na língua italiana de vários nomes da literatura de língua inglesa, como Daniel
Defoe, Charles Dickens, Herman Melville, James Joyce, Sinclair Lewis, John dos
Passos, Gertrude Stein e William Faulkner. Publicou uma variedade de trabalhos na
prosa e na poesia, destacando-se A lua e as fogueiras, Diálogos com
Leucó e os diários Ofício de viver (1935-1950), no primeiro gênero;
no segundo, destaca-se com Trabalhar cansa. Figura ativa na frente
antifascista, este preso várias vezes, uma delas por três anos no sul da
Itália. Esses embates e a condição de um país cada vez mais rendido ao horror
juntaram-se ao espírito fatalista e melancólico contribuíram para fosse levado pelo
suicídio a 26 de agosto de 1950, em Turim.
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