terça-feira, 23 de março de 2010

Quatro poemas de Cesare Pavese

 


A ESTRELA DA MANHÃ
 
O homem só se levanta que o mar inda é escuro
e as estrelas vacilam. Um mormaço de alento
sobe reto das orlas, do leito do mar,
abrandando o respiro. Esta é a hora em que nada
acontece. O cachimbo entre os dentes também
cai sem brilho. Noturno é o som do marulho.
O homem só acendeu uma fogueira de galhos
e a observa dourar o terreno. Até o mar
daqui a pouco estará como o fogo, candente.
 
Não tem coisa mais acre que a aurora de um dia
em que nada haverá. Não tem coisa mais acre
do que a inutilidade. Cansada no céu
pende a estrela azulada, colhida na aurora.
Olhar o mar inda escuro e mancha de fogo
onde o homem, que não faz mais nada, se aquece;
olha e cai de sono entre as foscas montanhas
onde há um leito de neve. O arrastado das horas
é inclemente com quem já não espera mais nada.
 
Vale a pena que o sol se levante do mar
e essa longa jornada comece? Amanhã
voltará a morna aurora e seu brilho diáfano
e será que nem ontem e mais nada haverá.
O homem só gostaria de apenas dormir.
Quando a última estrela se apaga no céu,
o homem lento prepara o cachimbo e o acende.
 
9-12 de janeiro de 1936
 
 
DEPOIS
 
A colina se estende e uma chuva a encharca em silêncio.
 
Chove sobre os telhados: a estreita janela
é tomada de um verde mais fresco e mais puro.
Ao meu lado, deitada, a amiga: à janela,
um vazio, e ninguém nos olhava, e estávamos nus.
O seu corpo secreto caminha, a esta hora, na rua
com seu passo num ritmo mais lento; e a chuva
desce como esse passo, suave e cansada.
Minha amiga não nota a colina despida
que adormece no charco: caminha na rua
e as pessoas que a esbarram não sabem.
 
De noite
a  colina é varrida por trapos de névoa,
e a janela recolhe os seus sopros. A rua
a esta hora é um deserto; somente a colina
tem uma vida remota no corpo mais cavo.
Nós jazíamos, lassos, no sopro molhado
dos dois corpos, deitados no sono, enlaçados.
 
Numa tarde mais doce, de tépido sol
e de cores viçosas, a rua seria uma festa.
É gostoso passar pela rua, gozando
a memória do corpo, mas tudo difuso ao redor.
Na folhagem das ruas, no passo indolente das moças
e nas vozes de todos há um pouco da vida
que os dois corpos perderam, mas que é um milagre.
Descobrir lá no fundo da estrada a colina
entre as casas e vê-la passar que ali mesmo
minha amiga a contempla da estreita janela.
 
Mergulhou no brumoso essa pura colina
e o chuvisco sussurra. Está ausente a amiga
que levou com doçura o seu corpo e o sorriso.
Amanhã, no céu claro e lavado da aurora,
minha amiga andará pelas ruas, suave
em seu passo. Podemos nos ver, se quisermos.
 
1934
 
 
A NOITE
 
Mas a noite de ventos, a límpida noite
que a lembrança roçava de leve, é remeta,
é lembrança. Perdura uma calma aturdida,
um sossego de folhas e nada. Do tempo
que ultrapassa a lembrança só resta um difuso
relembrar.
 
Certas vezes retorna no dia,
numa imóvel clareza de um dia de estio,
esse espanto longínquo.
 
Da janela vazia
o menino mirava as colinas na noite,
frias e negras, e olhava espantado o maciço:
vaga e límpida imobilidade. Entre as folhas
farfalhando no escuro, surgiam os cerros
onde todas as coisas do dia, as encostas
e os vinhedos e o verde, eram claras e mortas
e o viver era um outro, de vento, de céu
e de folhas, de nada.
 
E às vezes retorna
no sossego parado de um dia a lembrança
dessa vida alheada na luz espantosa.
 
16 de abril de 1938
 
 
MANHÃ
 
A janela entreaberta contém um rosto
sobre os campos do mar. Os cabelos vagos
acompanham o terno balanço do mar.
 
Já não há mais lembranças sobre este rosto.
Só uma sombra fugaz, como fosse uma nuvem.
A sombra é úmida e doce como a da areia
de uma intacta caverna, sob o crepúsculo.
Já não há mais lembranças. Só um sussurro
que a voz desse mar tornada lembrança.
 
No crepúsculo a água mole da aurora
que se banha de luz resplandece a face.
Cada dia é um milagre sem tempo
sob o sol: uma luz salgada o recobre
com um vivo sabor de fruto marinho.
 
Não existe lembrança sobre este rosto.
Não existe palavra que o contenha
ou disponha entre as coisas passadas. Ontem,
dessa breve janela sumiu-se como
sumirá num instante, sem mais tristeza
ou palavra humana, do campo do mar.
 
9-18 de agosto de 1940
 
Cesare Pavese nasceu a 9 de setembro de 1908, em Santo Stefano Belbo. Estudioso da obra de Walt Whitman, foi tradutor na língua italiana de vários nomes da literatura de língua inglesa, como Daniel Defoe, Charles Dickens, Herman Melville, James Joyce, Sinclair Lewis, John dos Passos, Gertrude Stein e William Faulkner. Publicou uma variedade de trabalhos na prosa e na poesia, destacando-se A lua e as fogueiras, Diálogos com Leucó e os diários Ofício de viver (1935-1950), no primeiro gênero; no segundo, destaca-se com Trabalhar cansa. Figura ativa na frente antifascista, este preso várias vezes, uma delas por três anos no sul da Itália. Esses embates e a condição de um país cada vez mais rendido ao horror juntaram-se ao espírito fatalista e melancólico contribuíram para fosse levado pelo suicídio a 26 de agosto de 1950, em Turim.
 
* Traduções de Maurício Santana Dias, publicadas inicialmente na revista Magma.
 
 

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