Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.
Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.
Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.
Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.
Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há esperança de um mar,
Mas não desejo de o ter.
*
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
*
Quando eu era criança,
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.
É hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto,
Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.
•
Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa. Considerado um dos
mais importantes poetas das literaturas de língua portuguesa, a sua poesia acabou por ser decisiva na
evolução de toda a produção poética do século XX. Se nele é ainda
notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e
invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que
respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal,
na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão
simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de
olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia
racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível
para ter criado os célebres heterônimos - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e
Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterônimo Bernardo Soares. Morreu em 30 de novembro de 1935.
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