segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um poema de Rachel de Queiroz de "Mandacaru" mais dois inéditos



O ACRE

         Na ambição de encontrar mais borracha e mais ganho
                   de enricar mais depressa,
             a gente deixou atrás Manaus e o Rio Negro...

                   Foi-se trepando pela correnteza
                           na procura ansiosa do ouro elástico,
                   ver se cumpria o eterno fado dos êxodos:
         a fuga, a luta, o ganho e — coroando tudo 
                   a volta triunfante e endinheirada.

                   Lá acima, muito acima
         — já longe dos rios das icamiabas guerreiras —,
                   tinha uma terra salubre,
         onde a borracha corria livre nas veias da seringueira
                   sem saber de tigela e machadinha.

                   Os cearenses, aí, botaram a mochila no chão
                   e ficaram trabalhando.

         Depois, eles, que chegaram sozinhos, desamparados,
                   acharam umas índias bonitas
              que chamavam todo o mundo de usted...
         E elas trataram deles, quando veio o beribéri,
         e lhes deram muitos filhos entroncados e viçosos,
         que enchiam os barracões de algazarra e de alegria.

         E eles foram querendo bem àquela terra,
                   tão rica, tão sem dono,
         que dava tanto dinheiro e tanta felicidade...

                   Mas lá vem o ditado
         "Tudo no mundo se acaba,
                                     tudo no mundo tem fim".. .
                  E um belo dia
                            apareceu o dono...

         "—Vá-se embora, cearense, vá-se embora!
         Você veio desbravar este buraco de mundo
                   pra meu proveito e meu gozo!...
         A borracha, que lhe deve tanta noite mal dormida,
                   sou eu que quero vender!

                  Eu nunca abri estrada na seringa
          e agora vou andar nas que você abriu...
                   A barraca que você levantou quando brabo
         — ai! A tristeza do brabo que soluça de saudade, olhando o rio correr! —,
                   pois também sua barraca, filha da sua saudade,
                   eu quero tomar pra mim...

                   Eu nunca fazia nada,
         porque tinha medo dos bichos que rodeiam os barracões;
                   você aceirou em redor,
                   demarcou os seringais,
         e agora os bichos se amoitam com receio do seu rifle,
                   com medo do seu terçado.

         Vá! Volte pra sua terra! Volta pior do que veio...
         numa proa de navio, tão magro, tão empambado!
                   Chegando lá, que é que acha?
            A ramada do roçado, já queimaram nas coivaras;
                   sua barraca de taipa, o tempo já derrubou...
         E sua criaçãozinha? Mas você não comeu toda,
                            quando o legume faltou?...

         Lá mesmo na sua terra, quem se lembra de você?
         " — Aquele foi embarcado... morreu ou ficou por lá... "
         Vá! Só leve a sezão que apanhou por aqui
                   e a saudade de sua cunhã acreana,
                            dos seus curumins caboclos,
                   que eu também tomo pra mim..."

                   A resposta, qual seria?
                            Insolente e audacioso,
                            mostrou-lhe a ponta da língua,
                   mostrou-lhe a ponta da faca...

                   E, na luta pela terra,
                   o cearense fez mais um pouco
                   que tudo aquilo que os livros contam
                   na grande lista dos heroísmos...

                   Ah! O horror das trincheiras parecidas
         a sepulturas encarrilhadas num zigue-zague macabro!...
                          Nos matagais doentios, onde as maleitas têm casa
                              e devoram mais vidas do que as balas,
               nos combates lá no rio, na casca frágil das montarias,
         e que sempre acabavam em festim de jacarés...

                   Pobre dono escorraçado! Chorava de fazer dó!...

                 E o barão do Rio Branco teve pena
                   e deu-lhe, pra consolo, um bocado de libras esterlinas...
                            e ele agarrou no dinheiro
                                      e foi brincar de cara ou coroa...


GEOMETRIA DOS VENTOS

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
                                       mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia. 


* Poema publicado no Jornal de Poesia. Arquivo de Álvaro Pacheco.


TELHA DE VIDRO

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!


* Poema publicado no Jornal de Poesia.


Rachel de Queiroz nasceu em 17 de novembro de 1910 em Fortaleza. Quando jovem a família mudou-se para Quixadá, onde a escritora viveu boa parte de sua vida. Traduziu, escreveu para imprensa e romances importantes para a literatura brasileira, como O Quinze e Memorial de Maria Moura. Foi a primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras. Sua obra poética é esparsa e cobre os anos iniciais de sua escrita; deixou um inédito, Mandacaru, publicado postumamente, em 2010, pelo Instituto Moreira Salles e outra parte da sua poesia foi reunida por Ana Miranda na antologia Serenata (2010).

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