segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Três poemas do livro "Macau", de Paulo Henriques Britto




VÉSPERA 

No trivial do sanduíche a morte aguarda.
Na esquiva escuridão da geladeira
dorme a sono solto, imersa em mostarda.

A hora é lerda. A casa sonha. A noite inteira
algo cricrila sem parar - insetos?
O abacaxi impera na fruteira,

recende esplêndido, desperdiçando espetos.
A lua bate o ponto e vai-se embora.
Mesmo os ladrilhos ficam todos pretos.

A geladeira treme. Mas ainda não é hora.
Se houvesse um gato, ele seria pardo.
A morte ainda demora. O dia tarda.


ACALANTO

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.


BAGATELA PARA A MÃO ESQUERDA

Escrever com a mão esquerda
é tarefa bem ingrata.
Não seria empreendida
se não fosse estritamente
necessária.

A mão esquerda é mais dura,
mais austera, e desconfia
desses gestos estouvados
que a mão direita, impensada, 
esbornia.

À mão esquerda é vedado
o recurso falso e fácil
de dispensar partitura,
a fraqueza (dita força)
do hábito.

Daí o jeito contido
das coisas que ela produz,
o ar desesperançado
de quem até nem precisa
vir à luz.

Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro a 12 de dezembro de 1951. Tradutor e autor de vários livros de poesia, entre eles Liturgia da matéria – sua obra de estreia –, Mínima líricaTardeMacau, obra com a qual recebeu o Prêmio Portugal Telecom Trovar claro.

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