a minha vida eu a vivo em círculos crescentes
sobre as coisas, alto no ar.
Não completarei o último, provavelmente,
mesmo assim irei tentar.
Giro à volta de Deus, a torre das idades,
e giro há milênios, tantos...
Não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
ou um grande, um grande canto.
***
Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
estou bem perto de ti.
Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
por mero acaso aliás;
bem pode ser que um grito da tua ou minha boca —
e eis que se desfaz
sem só rumor ou ruído.
Com imagens tuas o muro foi construído.
Diante de ti tuas imagens são como nomes.
e quando um dia dentro de mim esteja acesa
a luz com que te conhece minha profundeza,
será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.
E os meus sentidos, que um torpor célere consome,
estão sem pátria, exilados da tua grandeza.
***
Tu, obscuridade de onde emana
meu ser, amo-te mais do que à chama
que o mundo reduz
ao círculo da sua luz:
ali dentro, resplandece;
fora dali, ser nenhum a reconhece.
mas na obscuridade tudo se contém:
as formas e as chamas, os animais e eu também,
nela que consorcia
existências e energias —
pode bem ser que uma força sombria
se mova em minhas cercanias.
É às noites que minha alma se confia.
***
Obreiros somos — mestre, aprendizes, serventes —
e te construímos, ó grande nave altaneira.
Às vezes chega a nós um peregrino silente;
ei-lo que como um clarão cruza as nossas cem mentes
e trêmulo nos traz alguma nova maneira.
Galgamos andaimes que ao nosso passo estremecem;
maciços os martelos que nossas mãos sustêm;
isso até aflorar-nos a fronte uma hora que se
irisa e fulge como se de tudo soubesse:
como o vento vem do mar, é de ti que ela vem.
ouve-se então um malhar de martelos inúmeros
que, golpe após golpe, pelas montanhas se expande.
só te deixamos quando a noite cai e no escuro
podemos já ver-te os vagos contornos futuros.
Deus, como tu és grande.
•
Rainer Maria Rilke nasceu a 4 de
dezembro de 1875, em Praga, na Boêmia, então Império Austro-Húngaro. Estudou na
cidade natal e ainda em Munique e Berlim. Sua estreia na literatura — onde se
afirmará um dos poetas de língua alemã mais importante do século XX — acontece
em 1894, com Vida e canções. Na viagem pela Rússia, a convite de Lou
Andreas-Salomé, adquiriu a inspiração religiosa que modificaria os tons de seus
primeiros trabalhos. É desse período Histórias do bom Deus. A estes trabalhos,
acrescentou ainda O livro das horas (1905), Elegias do Duíno
(1923), Sonetos a Orfeu (1923) e Cartas a um jovem poeta
(publicação póstuma que se tornou uma das mais conhecidas no mundo, de 1929). Rilke
morreu a 29 de dezembro de 1926, em Montreux, na Suíça.
* Traduções de José Paulo Paes.
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