quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Dois poemas de Donizete Galvão



Nigredo

Farão de você uma espécie de sombra,
mas uma sombra que deseja a vida e nunca morre.
Cesare Pavese

Há muito habitas
um reino escuro
onde te imaginavas
apenas hóspede.

Cadê o júbilo
ao avistar o mar
e quando sentias
o cheiro da maresia?

No reino escuro
não há memória
dos dias de luz
com sol a pino.

Entre sombras
guardas o núcleo
de tua nódoa,
pedra de aluvião.

Não te escapas
da obra em negro,
purgatório infindo
de suas feridas.


Lições da noite

Antes de sair de casa,
mesmo com o sol ainda alto,
convém preparar
a lamparina.
Enchê-la de querosene,
subir-lhe um tanto o pavio
e deixá-la bem perto da porta.
Antes de se ir para a cama,
todo cuidado é pouco:
há que apagar
a lamparina.
Sua fumaça desenha abstrações
que marcam a cal da parede
e tingem de negro nossas narinas.

Quando a luz é precária
e as sombras têm poderes,
tateia-se pela casa a buscar
a lamparina.
A brevidade de sua chama
e a baixa luz com que nos ilumina
lembram-nos de que a noite é nossa sina.


Um comentário:

  1. Há muito tempo não lia poesia de tão elevada estirpe lírica!
    Essa "lamparina" me trouxe, de 60 anos passados, minhas noites de infância, assombradas. Mas de uma intensidade que raras vezes nos 60 anos depois me foi dado/dada viver.

    ResponderExcluir