foto: Alberto Cunha. |
em boa
verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
as vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
e traço meia dúzia de linhas:
as vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
sua própria profundidade
*
escrever
poemas não é boa maneira de atordoar os
tempos do
verbo,
não é o
mesmo que meter a cabeça num buraco abissínio,
nem perder
algures uma perna
e lembrar-me
depois de perder ainda a outra:
ninguém
ganha assim uma barra de ouro,
ninguém
glorifica o corpo queimando-o com barras de ouro,
ninguém
transforma assim uma chaga a beleza humana,
tórax e
membros e a cabeça por entre a espuma:
e como só de
pensá-lo o corpo avança!
escrever,
deixar de escrever,
escrever ou
não escrever não é acabar assim tão depressa
quanto se
pensava
um poema ou
dois ou cem não é nunca até ao fim,
escrever
poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do
costume:
colinas tão
próximas como se guardassem os nossos próprios
olhos,
e logo
depois leva-as o vento para adjectivos longínquos,
tudo tão
prodigioso que se não entende nada:
uma rosa é
uma rosa é uma rosa - disse ela em inglês
(há quantos
anos li isso!)
(há quantos
anos fiquei bêbedo desse talhão de roseiras!)
a rose is a
rose is a rose et coetera
- mudou-me a
vida?
oh faminta
ciência da paciência!
coisas bem
menores mudaram para sempre a minha vida,
e então
porque não a mudaria uma rosa compactamente
múltipla?
morrer por
uma rosa é que fia mais fino:
que fabuloso
fio em que roca e em que fuso,
que segredo
do mundo
*
fico tão feliz quando vejo como os golfinhos são inteligentes
tão subtis no súbito entendimento das intenções segundas
que temos em relação a eles
se lhes dessem a ler bons poemas maior proveito teriam
aqueles que os escrevem
do que têem com A ou B
eu cá por mim estou certo de que nenhum golfinho diria
a propósito da morte de Deus e da glória do poema onde
morre
as palavras turvas que transmitiram algumas bocas
maometanas
uma dessas bocas foi a mesma que disse
viva o profeta!
quando decretaram a morte de Salman Rushdue
por causa dos Poemas Satânicos
parecia Lisboa nas trevas católicas
mas não ele felizmente não estava à mão de matar
até aproveitou a confusão e mudou de mulher
e na Dinamarca para aquecer um pouco
a malta gozava fazendo caricaturas sacrílegas dos ayatolas
mais um pouco e salva-se o mundo
*
o António
Ramos Rosa estava deitado na cama
contra a parede
e deu meia volta sobre si mesmo
e ficou de cara voltada contra a parede
e fechou os olhos
e fechou a boca
e ficou todo fechado
e então morreu todo
fundo e completo de uma só vez
e apenas ele no tempo e no espaço
e só agora passado ano e meio eu compreendo
como era preciso ser assim tão íntimo para sempre
tão compacto
mais que o mundo inteiro
— e ele sou eu
contra a parede
e deu meia volta sobre si mesmo
e ficou de cara voltada contra a parede
e fechou os olhos
e fechou a boca
e ficou todo fechado
e então morreu todo
fundo e completo de uma só vez
e apenas ele no tempo e no espaço
e só agora passado ano e meio eu compreendo
como era preciso ser assim tão íntimo para sempre
tão compacto
mais que o mundo inteiro
— e ele sou eu
•
Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal. Estudo na terra natal até o 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. Teve inúmeros trabalhos e colaborou em vários periódicos como A Briosa, Re-nhau-nhau, Búzio, Folhas de Poesia, Graal, Cadernos do Meio-dia, Pirâmide, Távola Redonda, Jornal de Letras e Artes. Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. Viajou pela Bélgica, Holanda, Dinamarca e em 1971 partiu para África onde fez uma série de reportagens para a revista Notícias. Escreveu diversas obras em vários gêneros, mas sempre com maior afeição pela poesia; desta última forma, destacam-se livros como A colher na boca, Poemacto, O bebedor noturno, Ou o poema contínuo e A faca não corta o fogo. Em 1994 foi-lhe atribuído o Prêmio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015.
Como sempre - ou quase - severo e irônico o escritor Herberto Helder, para cuja família eu envio, daqui do Brasil, minhas condolências.
ResponderExcluirDarlan M Cunha