MARIA BONITA
Esta noite em Angico
A brisa é calma.
No silêncio farfalham
Minhas anáguas
Como farfalham asas
E no escuro minha carne
Cheira a mato.
Vem meu amor e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como quem lava
A casa;
Águas frescas na tarde.
Tuas limpas carícias,
Teus dedos como pássaros
E teu corpo que arde
Como estrelas
No espaço.
Não quero tua candeia,
Só meus sonhos acesos
E eu te direi de nácar,
Terciopelo,
Coisas antigas, pelo de
Leoa; voz de cego na feira.
Não quero teu braseiro,
Tua intensa
Cintilação que queima
Meus vestidos
Só quero a tua volta,
Tua presença
Iluminando a noite
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.
Que sabes de minha vida
Além da morte
Inquieta que me ronda?
Que sabes desta chita
Destes panos
Que envolvem minha nudez
Como uma chama?
São teus olhos
Carvões que me devoram,
São teus beijos
Fosforescências de mel,
Travo forte das frutas.
Teus dedos como setas
Apontam meu destino:
Meu caminho,
Na planta de teus pés;
Meu horizonte,
No risco de tuas mãos
E meus cabelos
Esparsos sobre a relva
Em que me habitas.
Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.
Sou teu sabre,
Facão com que degolas.
Sou o gosto do sal,
Veneno que espalharam
No prato.
Sou a colher de prata
Azinhavrada. Sou teu laço.
Teu lenço
No pescoço.
Sou teu chapéu de couro
Constelado
Com estrelas de prata,
Sou a ponta
De teu punhal buscando
O peito dos macacos.
Sou teu braço,
A cartucheira cruzada
Sobre o peito,
sou teu leito
De angico e alecrim
Sou a almofada
Em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que mataste.
Sou a bainha
E a lâmina é meu resgate.
Sou tua fera. Sussuarana
No escuro — bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes altos
Mundéus de teu alarme.
Sou o parto
Da morte que te espreita.
Sou teu guia
Tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
Sou tua filha. Teu cachorro fiel,
Tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
O lombo nas esporas.
Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.
Areia no sapato.
Sou a rede
Aberta como um fruto,
Sou soluço. Fome escura
De poço. Sou a caça
Abatida. Lebre e gato,
Coisas quentes ao tato.
Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,
A noite é vasta.
Vem devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.
Teus beijos como
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata
— Fúria e falta —
E enquanto a noite é calma
Vem e apaga
Na pele de meu peito
Esta fome sem data.
Esta noite em Angico
A brisa é calma.
No silêncio farfalham
Minhas anáguas
Como farfalham asas
E no escuro minha carne
Cheira a mato.
Vem meu amor e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como quem lava
A casa;
Águas frescas na tarde.
Tuas limpas carícias,
Teus dedos como pássaros
E teu corpo que arde
Como estrelas
No espaço.
Não quero tua candeia,
Só meus sonhos acesos
E eu te direi de nácar,
Terciopelo,
Coisas antigas, pelo de
Leoa; voz de cego na feira.
Não quero teu braseiro,
Tua intensa
Cintilação que queima
Meus vestidos
Só quero a tua volta,
Tua presença
Iluminando a noite
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.
Que sabes de minha vida
Além da morte
Inquieta que me ronda?
Que sabes desta chita
Destes panos
Que envolvem minha nudez
Como uma chama?
São teus olhos
Carvões que me devoram,
São teus beijos
Fosforescências de mel,
Travo forte das frutas.
Teus dedos como setas
Apontam meu destino:
Meu caminho,
Na planta de teus pés;
Meu horizonte,
No risco de tuas mãos
E meus cabelos
Esparsos sobre a relva
Em que me habitas.
Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.
Sou teu sabre,
Facão com que degolas.
Sou o gosto do sal,
Veneno que espalharam
No prato.
Sou a colher de prata
Azinhavrada. Sou teu laço.
Teu lenço
No pescoço.
Sou teu chapéu de couro
Constelado
Com estrelas de prata,
Sou a ponta
De teu punhal buscando
O peito dos macacos.
Sou teu braço,
A cartucheira cruzada
Sobre o peito,
sou teu leito
De angico e alecrim
Sou a almofada
Em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que mataste.
Sou a bainha
E a lâmina é meu resgate.
Sou tua fera. Sussuarana
No escuro — bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes altos
Mundéus de teu alarme.
Sou o parto
Da morte que te espreita.
Sou teu guia
Tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
Sou tua filha. Teu cachorro fiel,
Tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
O lombo nas esporas.
Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.
Areia no sapato.
Sou a rede
Aberta como um fruto,
Sou soluço. Fome escura
De poço. Sou a caça
Abatida. Lebre e gato,
Coisas quentes ao tato.
Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,
A noite é vasta.
Vem devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.
Teus beijos como
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata
— Fúria e falta —
E enquanto a noite é calma
Vem e apaga
Na pele de meu peito
Esta fome sem data.
SALOMÉ
Tantos anos depois
Não faz nenhum sentido,
Estória tão antiga...
— Eu te amo, eu disse,
Em meu vestido azul
Que um girassol floria.
— Eu também. E teu corpo
Encostado
Ao meu corpo, tremia.
Embriagada eu dançava,
Dilacerando os vestidos.
A interdição entre nós
Crescia como um bicho,
Serpente de pele lisa
E anéis coloridos.
Tantos anos depois
Ainda sonho com isso,
Um brilho de lâmina
E o sangue
A escorrer no ladrilho.
O tempo todo e eu sabia
Que, arrancados os véus,
Restaria o suplício. Restariam
As feridas. Um corpo ausente
E a lenda, de um remoto país
Onde habitei um dia.
Ó funesta tentação
De voltar àquela tarde
Em que dançando selvagem
Ao som de flautas,
Congelei a tua imagem
No fundo das retinas.
O topázio do sol
Ardia como brasa
E eu lavei as mãos
E limpei as sandálias.
No espelho, meu rosto,
Tinha a carne das estátuas.
Na espessura do silêncio,
Um gotejar de mágoa.
Na bandeja, os despojos,
Ainda tintos de vinho,
A cabeleira e os olhos
Acesos como círios.
Tantos anos depois
Não faz mesmo sentido
Mas guardo ainda o espelho
Onde espreito minha sorte,
Onde dia e noite espreito
A sombra que flutua
E se cola
Como máscara, em meu rosto,
Como chaga no coração,
Bem no peito onde o tempo
Enfiou sua adaga.
E danço como nunca mais
Dancei. O rei agora dorme,
Dourado, em seu sarcófago.
Mas ainda tenho os véus,
A bandeja e a espada.
PENÉLOPE
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
* Poemas copiados do Jornal de Poesia.
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