RIMANCES DAS
DONAS DE PORTUGAL
Este é o
singelo rimance
Por onde ha-de
ir, bem ou mal,
Uma palavra
de alcance,
Ainda que de
relance,
As Donas de
Portugal.
Do Portugal
pequenino,
Mapa ainda
em formação,
Entre os
dedos do destino
Que o tirou
como a um menino
De dentro do
coração...
...Tempo de
antanho indeciso,
Quando o
tropel das pelejas
Mata ou
exalta de improviso...
Paira sôbre êle
o sorriso
Das Urracas
e Tarejas.
Enquanto
Portugal cresce,
Enquanto a
conquista escalda,
Detrás da
luta aparece
O vulto, que
se esmorece,
De alguma
Aldonça ou Mafalda...
Figuras mansas,
de escassos
Perfis, sem
côres nem brilhos.
Postas nos salões
dos paços
Entre harpas
de timbres lassos
E encantos
de remedilhos
Graça dos
tempos distantes.
Dos amigos
alongados,
Em que se
contam instantes
Da ausência
dos inconstantes
Falando aos
pinos calados.
Tempos de
trovas discretas...
Sanchas,
Brancas, Leanores...
Quando havia
reis poetas
Que, com
falas incompletas,
Iam trovando
de amores...
E, entre
místicas infantas,
De figuras
nebulosas,
Assim, ó
tempo, levantas,
Rostos de
rainhas-santas
Que mudavam
pães em rosas...
Outros rostos
vêm à tona...
Vêm nas
águas do Mondego...
Uma Dona e
outra Dona...
E é o fado
que as abandona,
Perdidas no
seu socêgo...
“Eu era moça
e menina,
Por nome, D.
Inês...”
Era uma vez
uma sina...
Mais uma
espada assassina...
E um
príncipe... Era uma vez...
Ó coração
que sempre amas!
Ó amor, que
à desgraça impéles...
Como um sol
de estranhas flamas,
Entre as
suas nobres damas,
Aparece Leonor
Teles.
D. Filipa
descerra,
Do alto, a
nova dinastia,
Que, após os
feitos de guerra,
Há de sonha
algum dia
Com a forma
oculta da terra...
E este
cantar se abandona
Ao gôsto de
recordar
A primeira
triste Dona
De olhos
postos sôbre o mar
Que os
navios aprisiona...
Cada noiva
real, preciosa...
E cada
infanta suave, e cada
Princesa,
mais que uma rosa
Sensível e
delicada...
E Joana, “desesperada,
Mui
triste... muito chorosa...”
No tempo de
náus e velas...
No paço se encontrarão
Brites e
Marias belas
E a luz que
se anima entre elas,
de Francisca
de Aragão...
Romabisa...
Aonia... Sombria
Estrada de
Pastoral...
Ai de quem
te viu um dia!
(“A ela chamavam Maria
(“A ela chamavam Maria
E ao pastor
Crisjal...”)
Serranas vão
para os montes.
Poetas vão
para naufrágios,
Bem além dos
horizontes...
E o amor fez
de olhos fontes
Com água de
velhos presságios...
Anda vagando
pelo ar
Natércia,
desconhecida...
Lereno oferece
a vida
A alguém que
lhe queira dar
Uma esperança
perdida...
Pastorinhas encantadas...
Passam rebanhos,
sanfonas...
Amadas e
desamadas.
Misteriosas,
tristes Donas...
E as Donas
belas ou feias
Que não teve
o Sonhador
Que ao seu
sonho as fez alheias,
Namorado das
areias
Onde, emfim,
morreu de amor...
Madalena de
Vilhena
Rompe os
espaços, demente,
E o ar se
enche de estrenha cena
Em que o
fantasma lhe acena
Com gestos
de antigamente...
Mas a tréva é
iluminada
E o grande
horror se dissipa
Quando,
empunhando uma espada,
Arma os
filhos, clama e brada,
A, de Vilhena,
Filipa.
O rimance
encontra agora,
Como um pássaro
no dia,
Donas em que
o sonho mora
Vestido de
nostalgia...
Velhos nomes
de convento:
Violante do
Céo... Leonarda...
E aquela em
que o sentimento
Faz da
desgraça alimento.
– Mariana, a
que Deus não guarda...
E as musas
passam veladas...
Sono de
mágua e desengano...
Mortas figuras
caladas...
Grandes paixões
torturadas
Unindo Garret
a Elmano...
Donas tôdas silenciosas,
Que valeram
o universo,
Que nunca
foram ditosas,
E morreram
como rosas
Dando perfume
a algum verso...
Donas mórbidas,
vestindo
Seus trajes
de cemitério,
E pôndo um
sorriso lindo
– Para o
fazer mais infindo –
Sobre seu
grande mistério...
Donas de
pálido rosto,
De violáceas
olheiras,
Contemplando,
no sol posto,
Tecer-se o
véu do desgôsto
Pelas nuvens
– fiandeiras...
E as donas
que não tiveram
Sua morada
nos paços...
Que entre
monte e val nasceram,
E em val e
monte viveram,
Namoradas dos
espaços...
Que encheram
da côr dos astros
A ânfora clara
do olhar,
E sonharam
náus e mastros,
E choraram sôbre
os rastros
Dos filhos
dados ao mar...
Donas simples,
donas fortes,
Donas mortas,
donas vivas,
Donas de
diversas sortes,
Donas humildes
e altivas,
Descuidadas,
pensativas,
– Este
rimance foi feito,
Donas! Para vos
saudar.
Em cada
verso imperfeito
O coração toma
o geito
De uma vela
a navegar...
Sóis tôdas
aqui presentes,
Donas de
antanho r de agora,
Da estirpe
daquelas gentes
De largos
sonhos ardentes
Partidos por
mar afóra.
Gentes de
perpétua lenda,
Que se
fizeram assim
Como que se
aprenda
Que a sua
vida é uma senda
Para rimances sem fim...
Para rimances sem fim...
•
Cecília Meireles nasceu a 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro, cidade onde passou toda sua vida e de onde saiu para muitas viagens: nos anos quarenta para os Estados Unidos, onde deu palestras na Universidade do Texas, em seguida, México, Argentina, Uruguai, Chile... Professora e profunda interessada nas questões sobre educação no Brasil, Cecília começou sua carreira literária com a publicação de Espectros, em 1919. Depois desse livro se desenvolveu uma extensa bibliografia que transita entre a poesia, gênero que lhe deu reconhecimento, e na prosa. Morreu no dia 9 de novembro de 1964.
* “Rimance das
Donas de Portugal” foi escrito em 1931, quando a poeta foi convidada para
participar da Festa do Centro do Minho realizada no Rio de Janeiro. O texto foi
publicado na revista Lusitania que circulava entre os da comunidade
portuguesa. A descoberta é do professor Ulisses Infante, da UNESP-São José do
Rio Preto enquanto procurava informações sobre a primeira viagem da poeta a
Portugal. Publicado inicialmente no Estadão.
Nós somos muito fãs desse lindo poema épico. Cecília era um gênio. Uma linda e tocante homenagem às mulheres portuguesas e seus feitos.
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