TOMBEAU 1958
Uma ceia se prepara
para o meu sustento.
A minha vida é rara
ou parco invento.
Mesa tão vasta
a tão pouco apetite
de alma que se basta
em seu desquite.
Já um vinho abstrato
bebo em pensamento,
e, nesse ato,
permaneço sedento.
Tal a virtude
das lápides breves:
eis a plenitude
à qual te circunscreves.
1958
ELOGIO DA PROSA
A prosa é uma bala. Cabala
controversa, cabala inversa.
A prosa é uma razão rasa,
sem melopeia ou centopeia.
A prosa é rara e clara, e fica,
transpondo o que a clarifica.
A prosa é uma rota ativa:
linha reta e não rotativa.
A prosa não é rosa nem glosa,
e, sem ser hasta, não é casta.
Dura, perdura, e sem ser pura,
A prosa é uma coisa ciosa.
A prosa não condiz, mas diz,
sem dicções nem condições.
Não tem emblemas, nem problemas:
A prosa é uma causa cabal.
1963
BIOGRAFIA DE UMA IDEIA
ao fascínio do poeta pela palavra
só iguala o da víbora pela sua presa
as ideias são / não são o forte dos poetas
ideias-dentes que mordem e se remordem:
os poemas são o remorso dos códigos e / ou
a poesia é o perfeito vazio absoluto
os poemas são ecos de uma cisterna sem fundo ou
erupções sem larva e ejaculações sem esperma
ou canhões que detonam em silêncio:
as palavras são denotações do nada ou
serpentes que mordem a sua própria cauda
PEQUENA ESTÉTICA
eles dizem
que se deve defender a vida
é a mensagem deles
mas a morte
é tão metafórica
e sexy
é tesão certa
UM HOMEM MAGRO
Sentado à beira da cama
Quase na beirada
Com os pés soltos em alpargatas de pobre
Bem ereto
Em seu centenário
Espigado
Duro
Ele respira
O que se chamava de dignidade
E hoje
Alguns mofam disso
Uma camisa de brim popular
De listras diversas
Em vermelho marrom e amarelo
Muito magro quase um esqueleto
Mas firme
A cama dura está coberta
Com um incrível cobertor
De retalhos coloridos
E em cima dela
Sobre o cobertor
Que é um quilt artesanal
(Mas ele nem sabe disso)
Uma grossa bengala
Ignora que está elegantíssimo
Vestido no seu brim
Num ambiente pobre
E rude
Emana severidade
E verdade
•
Sebastião Uchoa
Leite nasceu em Timbaúba, Pernambuco, em 31 de janeiro de 1935. Viveu no Recife
até 1964. Estudou direito e filosofia na Universidade Federal de Pernambuco –
então Universidade do Recife; entre 1962 e 1965 foi professor na Reitoria e depois
na Escola de Biblioteconomia. Participou de O Gráfico Amador, pequena editora
de arte gráfica por onde publicou seu livro de estreia, em 1960, Dez sonetos
sem matéria. Além desta obra, em poesia, escreveu Antilogia (1979), Isso não é
aquilo (1982), Obra em obras (1989), A uma incógnita (1991), A ficção da vida
(1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Sua poesia foi
integralmente reunida em Poesia completa (2015).
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