À LA ADÉLIA
lavo panelas roupas e pratos
e me sinto um trapo.
meu homem me engana
com as minas bacanas
vestidas de prata, brinco brilhante
devo dizer
lavo as minhas panelas
e me sinto bela
como diz Adélia?
levanto cansada
carregando a pasta
entro no meu carro
e penso: como era bom
quando o homem provia
o sustento da casa
dos filhos e filhas.
como era bom
quando o homem provia!
amei casei pari
e agora de noite
meu homem namora
as mulheres do vídeo
moçoilas fagueiras
belas rameiras
e eu me pergunto
vida correta pra quê?
vontade de mudar o mundo
ser Joana de baixo
como a cada noite
no vídeo se vê
devo bater
o osso no prato
e não achar um saco?
*
Não me lamentes à noite, eu sob a terra.
Chora um pouco o amor que te tomei
E dei-o antecipadamente a ela.
Mas não chores demais. E também não esqueças.
Por que direi que ficarei contente
Se à tarde caminhares sobre o verde
com teu andar curioso e adolescente
Acompanhando um outro andar igual?
Eu não direi. Mas nunca me lamentes.
E também não esqueças do vento dos passeios
E os arabescos inúteis do pátio de recreios
Na visita de amor à pequenina irmã.
Como nos rimos então! Olhávamos o alto, a torre
O infinito e todos ao redor olhavam aquele chão!
Mas nunca me lamentes. Chora um pouco, isto sim
A brevidade crua deste amor presente.
•
Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930. Estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo. Publicou seu primeiro livro em 1950, Presságio e, logo no ano seguinte, Balada de Alzira. Na década posterior trocou a badalada vida urbana pela tranquilidade na fazenda da mãe, São José, próxima a campinas, onde construiu a casa do Sol. Escreveu teatro e ficção a partir de 1970. Dentre eles se destacam O caderno rosa de Lori Lamby, Cartas de um sedutor e Rútilo nada. Morreu em 2004.
* De Da poesia (Companhia das Letras, 2017)
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