segunda-feira, 26 de março de 2018

Quatro poemas de António Maria Lisboa



RÊVE OUBLIÉ

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o teto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.


UMA VIDA ESQUECIDA

Para o Fernando Alves dos Santos

Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.

Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.


POEMA H

Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.


POEMA Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

António Maria Lisboa nasceu em Lisboa, em 1 de agosto de 1928. Em 1947 formou com Pedro Oom e Henrique Risques Pereira um pequeno grupo à parte das atividades dos surrealistas. Em março de 1949, partiu para Paris, onde permaneceu por dois meses. Datam provavelmente daí seus primeiros contatos com o Hinduísmo, a Egiptologia, com o Ocultismo em geral. De volta a Lisboa, colaborou com poemas e desenhos na “I Exposição dos Surrealistas”, do grupo dissidente. A partir dessa altura, a amizade com Mário Cesariny acompanhá-lo-ia até os últimos dias. Dentre suas obras destacam-se Afixação proibida (em colaboração com Mário Cesariny, Erro próprio, Ossóptico e Isso ontem único. Postumamente, Cesariny editou A verticalidade e a chave, Exercício sobre o sono e a vigília de Alfred Jarry seguido de o senhor Cágado e o menino e um antologia reunindo toda a poesia do poeta. Lisboa morreu de tuberculose aos 25 anos.

* Estes poemas foram apresentados na edição n.70 da Revista da Academia Brasileira de Letras.


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