RÊVE OUBLIÉ
Neste meu
hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu
desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha
mania de te dar o que tu gostas
e depois
esquecer-me irremediavelmente de ti
Agora na
superfície da luz a procurar a sombra
agora
encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a
oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois
matar-te e dar-te vida eterna
Continuar a
dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a
viver até cristalizar entre neve
continuar a
contar a lenda duma princesa sueca
e depois
fechar a porta para tremermos de medo
Contar a
vida pelos dedos e perdê-los
contar um a
um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as
ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois
contar um a um os teus dedos de fada
Abrir-se a
janela para entrarem estrelas
abrir-se a
luz para entrarem olhos
abrir-se o
teto para cair um garfo no centro da sala
e depois
ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO
disto tudo uma montanha de ouro
E no FIM
disto tudo um Azul-de-Prata.
UMA VIDA ESQUECIDA
Para o
Fernando Alves dos Santos
Eu conheço o
vidro franja por franja
meticulosamente
à porta
parado um homem oco
franja por
franja no espaço
meticulosamente
oco uma porta parada.
Um relógio
dá dez badaladas ininterruptamente
dez
badaladas por brincadeira dança
um homem com
pernas de mulher
e um olhar
devasso no Marte
passo por
passo uma criança chora
uma águia e
um vampiro recuados no tempo.
POEMA H
Sei que dez
anos nos separam de pedras
e raízes nos
ouvidos
e ver-te, ó
menina do quarto vermelho,
era ver a
tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta
no Infinito
e toda essa
sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu
eras uma estrela que caiu
e incendiou
a terra
lá longe
numa fonte cheia de fogos-fátuos.
POEMA Z
As formas,
as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno
pássaro
e depois
longo tempo eu te perdi de vista
meus braços
são dois espaços enormes
os meus
olhos são duas garrafas de vento
e depois eu
te conheço de novo numa rua isolada
minhas
pernas são duas árvores floridas
os meus
dedos uma plantação de sargaços
a tua figura
era ao que me lembro da cor do jardim.
•
António Maria Lisboa nasceu em Lisboa, em 1 de agosto de 1928. Em 1947 formou
com Pedro Oom e Henrique Risques Pereira um pequeno grupo à parte das
atividades dos surrealistas. Em março de 1949, partiu para Paris, onde
permaneceu por dois meses. Datam provavelmente daí seus primeiros contatos com
o Hinduísmo, a Egiptologia, com o Ocultismo em geral. De volta a Lisboa,
colaborou com poemas e desenhos na “I Exposição dos Surrealistas”, do grupo
dissidente. A partir dessa altura, a amizade com Mário Cesariny acompanhá-lo-ia
até os últimos dias. Dentre suas obras destacam-se Afixação proibida (em colaboração com Mário Cesariny, Erro próprio, Ossóptico e Isso ontem único.
Postumamente, Cesariny editou A
verticalidade e a chave, Exercício
sobre o sono e a vigília de Alfred Jarry seguido de o senhor Cágado e o menino
e um antologia reunindo toda a poesia do poeta. Lisboa morreu de tuberculose
aos 25 anos.
* Estes poemas foram apresentados na edição n.70 da Revista da Academia Brasileira de Letras.
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