segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Dois poemas de Aleksándr Púchkin



Para...

Lembro do instante feliz:
Adiante, de relance, a vi.
Uma visão em revoada,
Tão bela que aos olhos agrada.

Nos vãos torvelinhos da vida,
Nas brumas de tanta amargura,
Sua voz me soou tão querida
E em sonho revi sua figura.

A fúria bravia das tormentas
Dispensa meus sonhos de outrora,
E leva sua voz — não se ofenda —
E os traços queridos, embora.

Surdo, sozinho, enclausurado,
Meus dias se arrastam em langor
Sem inspiração, sem divindade,
Sem pranto, sem vida, sem amor.

Mas eis que a alma se ressente:
De nova visão passageira,
Ao vê-la voltar de repente,
Tão bela, e aos olhos feiticeira.

E no peito bate o coração,
E algo renasce com vigor
A divindade, a inspiração,
A vida, as lágrimas, o amor.

1825

* Tradução de Aurora Fornoni Bernadini



O demônio

Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas idéias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.

1823

* Tradução Boris Schnaiderman e Nelson Ascher


Aleksándr Púchkin nasceu em Moscou em 1799. Foi aluno no prestigiado Liceu Imperial de Tsárkoie Seló em 1811, época em que seus poemas passaram a despertar atenção. Perseguido pela censura tsarista, foi exilado em 1820 e passou quatro anos fora da Rússia; no retorno, continuou a ser vigiado por Nicolau I - já então Púchkin havia se tornado historiador oficial do império. Deixou um legado de poemas que vão do romantismo ao classicismo, muitos dos quais se tornaram célebres como"O século de prata". Morreu aos 37 anos num duelo com o oficial francês George-Charles D'Anthès, que cortejara a esposa do poeta. 

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