Era um deserto de luz. A cotovia
Sobre o deserto do deserto andava
A construir a frágil escadaria
Por onde os trilos de cristal criavam
Deserta perspectiva
Espaçando timbres em secura de harpa.
Era um deserto. Pela luz acima
A altura do canto entrava.
E, quando já a cotovia
Perdera o ponto da sua sombra, a estrada
Do horizonte se erguia
Com rispidez diurna de cigarras.
Marraquexe / Paris, 2 / 5 nov. 85
O renque abria à multidão das árvores
A límpida matriz de arruamento
Que progredia só pela saudade
De um puro fora a caminhar pra dentro
Dum ritmo ritmo esclarecido de paisagem
Com avenidas de estremecimento
De renque invicto. Abrindo claridade
Além ainda do conhecimento
De estar a ver pela floresta a grande
Viagem indo pelo fora dentro.
Paris, 16 out. 85
As cidades já vistas e que assentam
No esquecimento da penumbra, acima
Trazem figuras de peso
Que as fundeara ao largo da retina.
Debrua-as o imóvel vento
Das recuadas épocas que haviam
Perdido a história. Mas sustentavam dentro
A inumerável sucessão dos dias.
As cidades já vistas trazem um silêncio
Avassalador. Que as priva
Da extensão. Mas não do tempo
De estarem sendo nomeadas. Lidas.
Paris, 10 dez. 85
É noite à volta do frágil candeeiro.
Um cónico perímetro de estudo
Acende o seu silêncio
E essa paciência que envolvem o assunto.
É noite. O pensamento
Aplica a análise à forma como o mundo,
Palpitando em si mesmo,
Vem à palavra palpitar obscuro.
Mas esta noite de mundo tão intenso
Nomeia-se claríssima no estudo
Que vai correspondendo ao movimento
Com que o silêncio se acende no assunto.
Paris, 5 jan. 86
Há um vento imóvel que quase transfigura
Em si mesmos os bichos e os homens.
Vemos passar pela floresta a sua
Tepidez de covil. Perto da noite,
Um halo de sentidos sensíveis os circunda
E movem a cautela inaugural da fome.
Ou, se pisam a rua,
Quase que vão por onde
Quando eram reis de uma consciência obscura
A palpitar pelos confins da morte.
Há um vento imóvel. Uma paciência, a crua
Caça. E por onde a encantação dos nomes
Relampagueia, unificando a sua
Nomeação à astralidade do homem.
Paris, 2 jan. 86
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Fernando Echevarría nasceu em 26 de fevereiro de 1929. Publicou seu livro de estreia em 1956, Entre dois anjos. Viveu em França, onde se aproximou dos círculos oposicionistas portugueses aí exilados; daí envolveu-se em vários movimentos de luta revolucionária contra o regime militar português. Só regressou a Portugal depois do 25 de abril. Escreveu ainda títulos como Tréguas para o amor (1958), Sobre as horas (1963) e Ritmo real (1971). Premiado reiteradas vezes, com galardões como o Prêmio Pen Clube, Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e Prêmio Nacional de Poesia António Ramos Rosa.
* Os poemas aqui apresentados foram publicados na edição 113-114 da revista Colóquio / Letras, jan.1990.
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