O CANTO DO CORVO (I)
"Eu cheguei de muito longe
Para trazer a má notícia.
Passei por cima da montanha,
Atravessei a nuvem baixa,
Espalhei no pântano meu ventre.
Voei sem descanso,
Por cem milhas sem descanso,
Para encontrar seu ouvido,
Para trazer-lhe a terrível nova
Que lhe tire a alegria do sono,
Que lhe corrompa o pão e o vinho,
Que se assente à noite em seu coração.
Assim cantava torpe dançando,
Atrás da vidraça, sobre a neve.
Ao se calar, olhou maligno,
Riscou com o bico o solo em cruz
E estendeu as asas negras.
9 de janeiro de 1946
SHEMÀ
Vós que viveis seguros
Em vossas casas aquecidas
Vós que achais voltando à noite
Comida quete e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Que trabalha na lama
Que não conhece paz
Que luta por um naco de pão
Que morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força de recordar
Vazios os olhos e frio o ventre
Como uma rã no inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Vos comando estas palavras.
Gravai-as em vossos corações
Estando em casa, caminhando na rua,
Deitando, levantando:
Repeti-las a vossos filhos.
Ou que vossa casa se desfaça,
A doença vos impeça,
Vossa prole desvie o rosto de vós.
10 de janeiro de 1946
PARA ADOLF EICHMANN
Corre livre o vento por nossas planícies,
Eterno pulsa o mar vivo em nossas praias.
O homem semeia a terra, a terra lhe dá flores e frutos:
Vive em ânsia e alegria, espera e teme, procria ternos filhos.
... E você chegou, nosso precioso inimigo,
Você, criatura deserta, homem cercado de morte.
O que saberá dizer agora, diante de nossa assembleia?
Jurará por um deus? Mas que deus?
Saltará contente sobre o túmulo?
Ou se lamentará, como o homem operoso por fim se
lamenta,
A quem a vida foi breve para tão longa arte,
De sua terrível arte incompleta,
Dos treze milhões que ainda vivem?
Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte.
Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu:
Que viva insone cinco milhões de noites,
E que toda noite lhe visite a dor de cada um que viu
Encerrar-se a porta que barrou o caminho de volta,
O breu crescer em torno de si, o ar carregar-se de morte.
20 de julho de 1960
•
Primo Levi nasceu no dia 31 de julho de 1919 em Turim. Químico e escritor, de família judaico-piemontesa, foi um sobrevivente de Auschwitz. Dessa condição se forjou toda sua obra, marcada por títulos como É isto um homem?, Os afogados e os sobreviventes, A tabela periódica e A trégua. Escreveu também poesia, gênero com o qual procedeu sua estreia literária, em junho de 1946. Sua atividade de escrita permaneceu sempre marcada pelo retorno ao verso e no final dos anos 1970 chegou a publicar por conta própria e anonimamente trezentos exemplares que trazia 23 poemas, boa parte deles inéditos. Só uma década depois sua obra poética começa a circular com melhor clareza na Itália. Levi morreu no dia 11 de abril de 1987.
* Traduções de Maurício Santana Dias.
* Traduções de Maurício Santana Dias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário