segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Dois poemas de Doris Lessing




OH CEREJEIRAS BRANCAS DEMAIS PARA O MEU CORAÇÃO 

Oh cerejeiras brancas demais para o meu coração, 
e todo o chão está embranquecido com sua morte, 
e todos os seus galhos afundam no rio, 
e cada gota cai do meu coração. 

Se houver justiça no anjo dos olhos que brilham,
ele dirá “Espere!” e me alcançará um punhado de cerejas. 
O anjo barbudo, justo e firme como uma cabra 
levanta uma cabeça de ruminante e mastiga a neve lentamente. 

É necessário, cabra, ficar aqui? 
Ainda precisa ficar aqui, quieta? 
Sempre vai ficar aqui, imóvel
à prova de fé, à prova de inocência?

FÁBULA

Quando olho para trás, me lembro de cantar. 
Embora aquele quarto grande e aconchegante estivesse sempre silencioso.

Impenetráveis, acreditávamos, ​​aquelas paredes, 
obscurecidas por escudos antigos. A luz 
brilhava sobre a cabeça de uma garota ou em suas pernas  
jovens esparramadas. E as vozes baixas
subiam em silêncio a se perder como na água. 

Além disso, estando todo quente e quieto como uma mão, 
se um de nós fechasse as cortinas
uma chuva bordada soprava descuidadamente. 
Às vezes, um vento esgueirava-se e fazia balançar as chamas, 
projetando sombras agarradas nas paredes, 
ou do lado de fora uivava um lobo na vasta noite 
e quando sentíamos que nossa carne estava congelando, ficávamos juntos. 

Mas a dança continuava por um tempo 
– é o que penso agora: 
formas lentas que se moviam serenas através
de poças de luz tecendo uma rede dourada no chão. 
Assim, deve ter continuado, para sempre, como um sonho. 

Mas entre um ano e outro – mudou o vento? 
A chuva finalmente apodreceu as paredes? 
Vieram os focinhos dos lobos a empurrar os raios caídos? 

Faz tanto tempo 
No entanto, às vezes me lembro do quarto acortinado
e ouço as vozes distantes e jovens que cantam.

Doris Lessing nasceu em Kermanshah, a 22 de outubro de 1919. Dentre os seus trabalhos mais importantes está os desenvolvidos com a ficção, que cobre um vasto leque estilístico, da autobiografia à ficção científica. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2007. Morreu cinco anos depois em Londres.

* Traduções livres de Pedro Fernandes de Oliveira Neto.

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