ARADO
Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
Ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.
Arado dentes enxadas
lavancando capoeiras
Mil prometimentos, juras
faladas, reverdadeiras?
Arado ara picoteira
sega relha amanhamento,
me desata desse amor
ternura torturamento.
BANHO (RURAL)
De cabaça na mão, céu nos cabelos
à tarde era que a moça desertava
dos arenzés de alcova. Caminhando
um passo brando pelas roças ia
nas vingas nem tocando; reesmagava
na areia os próprios passos, tinha o rio
com margens engolidas por tabocas,
feito mais de abandono que de estrada
e muito mais de estrada que de rio
onde em cacimba e lodo se assentava
água salobre rasa. Salitroso
era o também caminho da cacimba
e mais: o salitroso era deserto.
A moça ali perdia-se, afundava-se
enchendo o vasilhame, aventurava
por longo capinzal, cantarolando;
desfibrava os cabelos, a rodilha
e seus vestidos, presos nos tapumes
velando vales, curvas e ravinas
(a rosa de seu ventre, sóis no busto)
libertas nesse banho vesperal.
Moldava-se em sabão, estremecida,
cada vez que dos ombros escorrendo
o frio d'água era carícia antiga.
Secava-se no vento, recolhia
só noite e essências, mansa carregando-as
na morna geografia de seu corpo.
Depois, voltava lentamente os rastos
em deriva à cacimba, se encontrava
nas águas: infinita, liquefeita.
Então era que a moça regressava
tendo nos olhos cânticos e aromas
apreendidos no entardecer rural.
BOIS DORMINDO (I)
a Tomé Filgueira
A paz dos bois dormindo era tamanha
(mas grave era a tristeza de seu sono)
e tanto era o silêncio da campina
que se ouviam nascer as açucenas.
No sono dos bois seguiam tangerinos
que abandonando relhos e cichotes
tangiam-nos serenos com as cantigas
aboiadeiras e um bastão de lírios.
Os bois assim dormindo caminhavam
destino não de bois mas de meninos
libertos que vadiassem chão de feno;
e ausentes de limites e porteiras
arquitetassem sonhos (sem currais)
nessa paz outonal de bois dormindo.
BOIS DORMINDO (II)
Os bois dormem ainda. Já cansaram
de ver que o chão em pasto não rebenta.
Do sono é que lhes vem o encantamento
pois nele o verde verdinovoaponta.
Eles abrigam (quando adormecidos)
nos olhos, o rumor, a nostalgia
das noites invernais, as correntezas
onde iam beber água de manhã;
o cheiro dos estrumes que largavam
pelas queimadas, quando rasteavam
trilha tapera transbordando chuvas
de maio. São os bois. Não os despertem.
No sono seu ruminam madrugadas
que a terra seca não lhes pode dar.
•
Zila Mamede
nasceu em Nova Palmeira, no estado da Paraíba, em 15 de setembro de 1928. Aos
cinco anos mudou-se com a família para o Rio Grande do Norte. Como técnica em
contabilidade exerceu suas primeiras atividades nessa profissão enquanto se
dedicava aos interesses pelas letras. No âmbito da chamada Geração Pós-45, Zila
iniciou sua produção poética com a publicação de Rosa de pedra, em 1953.
Formou-se em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional com bolsa de estudos
conseguida por intermédio de Manuel Bandeira; no retorno a Natal, criou o
sistema de bibliotecas do estado. Especializou-se em administração de bibliotecas
nos Estados Unidos. Paralelo à profissão, publicou Salinas, em 1958, e O
arado, no ano seguinte. Dedicou-se a estudar a obra de Luís da Câmara Cascudo
e em 1970 publicou Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual (1918-1968);
seguiu-se com o estudo sobre a obra de João Cabral de Melo Neto entre 1976 e
1985, trabalho que levou até os seus últimos dias; o resultado está em Civil
geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo
Neto (1942-1982). Publicou, ainda em poesia Exercício da palavra
(1975), Corpo a corpo (1978), Navegos (1978) e A herança
(1984). Morreu em 13 de dezembro de 1985.
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