terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Dois poemas de Rui Caeiro




RETRATO

Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem

*


O nosso amor não é coisa que se apresente
a uma sociedade como esta cujas exigências
stop que é do nosso amor que se trata
o nosso amor cheira às folhas podres de Outono
e quanto a reverdecer vou ali e já venho
o nosso amor está de rastos e como há-de ir
o nosso amor coelho esfolado o nosso amor
disco partido o nosso amor rato morto o nosso
amor ovo cozido ovo estrelado porque isso tanto faz
o nosso amor osso esburgado o nosso amor
brinquedo que um menino esventrou e não sabe
agora como é que vai poder consertar
o nosso amor chá de tília choque
anafilático paragem cardíaca
mas nosso amor apesar de ou nosso amor
tudo e mais alguma coisa o nosso amor
cinco sentidos viste-o ouviste-o tocaste-o
cheiraste-o degustaste-o o nosso amor
seja ou não seja e esteja ou não esteja
ele é para já e largamente quanto basta


Rui Caeiro nasceu em Vila Viçosa a 27 de junho de 1943. Dentre seus livros, se destacam Deus, sobre o magno problema da existência de Deus (1988), Sobre a nossa morte bem muito obrigado (1989), Livro de afectos (1992), O Quarto Azul e outros poemas (2011), e Deus e outros Animais (2015). Morreu no dia 29 de janeiro de 2019.

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