terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Quatro poemas de Juan José Saer




A ARTE DE NARRAR

Agora escuto uma voz que não é mais que memória. Na
      folha
branca, o olho roça a rede negra que brilha, por momentos,
como cabelos imóveis contra a luz que resplandece,
      tensa,
ao anoitecer. Escuto o eco de uma palavra que ressoou
antes que a palpitação do ouvido batesse, e estremece
a caixa vermelha do coração simples como uma navalha. Não existe
outra coisa que dias atravessados de violência sutil, prisão
aberta aos momentos mais límpidos que o fogo? É o
      rumor
da memória de todos que cresce – o ressoar de passos
sobre caminhos duros como planetas que se entrecruzam em
       regiões reais –
com o mesmo rumor inaudível dos corpos que se abrem
e da chuva verde que se abre impossível sobre uma árvore
       gloriosa. Nado
num rio incerto que dizem que me leva da memória à
       voz.


DYLAN THOMAS IN AMÉRICA

Nos aviões e nos trens, alguém
se sente sólido e eterno. Mas uma morte
dócil me esperava no silêncio frio
do hospital. Trabalhei sem medo
e por cada minuto que vivi
coloquei uma pedra sobre meu corpo cego e carcomido
até que a turva realidade e meu espesso
silêncio se fizeram uma só cicatriz
lisa como uma lâmina.
After the first death, there is no other.
Mas a tênue esmeralda
das samambaias, como uma névoa rochosa,
morreu dez vezes desde então, em cada tenso
inverno, nos jardins de Gales,
e por dez vezes, fênix frágil,
renasceu.


DON GIOVANNI

Na prisão da pele, o prazer
de Sísifo é um trabalho forçado
e o post coitum triste a liberdade
provisória.


RUÍDOS DE ÁGUA

Ninguém está, embora pareça estar, no mundo.
Como quando na água lisa e resplandecente
cai uma pedra que rasga o ar com seu eco,
como o todo, permanência imóvel,
se abre e se fecha a cada nó, fugaz, de acontecer.
Ruídos de água. E silêncio, depois,
num lugar antigo e sem fronteiras.

Juan José Saer nasceu a 28 de junho de 1937 em Serodino, Santa Fé, Argentina. Considerado um dos nomes mais importantes da literatura em seu país, sua obra se desenvolveu predominantemente na prosa, da qual se destaca por romances como O enteado, As nuvens, O grande entre outros. Na poesia, escreveu uma variedade de textos esparsos. Morreu a 11 de junho de 2005, em Paris, França.

* Traduções de Pedro Fernandes de Oliveira Neto


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