terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Quatro poemas de Fernando Assis Pacheco




PESO DE OUTONO 

Eu vi o Outono desprender suas folhas, 
cair no regaço de mulheres muito loucas. 
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo 
na cidade de Heidelberg pronta para a neve 
saboreavam tepidamente a sua ignorância. 

Eu vi as amantes ensandecerem 
com esse peso de Outono. Perderem as forças 
com o Outono masculino e sangrento. 
Os gritos a meio da noite 
das amantes a meio da loucura voavam 
como facas para o meu peito. 

Alguns poetas li-os melhor no Outono, 
certos amores só poderia tê-los, 
como tive, nos dias doces da vindima.


SENTO-ME NA TUA TERNURA. A CHUVA CAI… 

Sento-me na tua ternura. A chuva cai, 
olhas-me tão fundo que de repente 
sou de vidro, cuidado, vou quebrar! 
Acaba triste o mês de Maio, perto. 
E estás no Maio triste, na chuva e no vento, 
a tua ternura quer matar-me. 
Quem sabe, amor, onde o amor se fere?


TENTAS, DE LONGE 

Tentas, de longe, dizer que estás aqui. 
Com peso triste caminha na rua o Outono. 
O meu coração debruça-se à janela 
a ver pessoas e carros, e as folhas caindo. 

Mastigo esta solidão 
como quando era pequeno e jantava 
diante dos pais zangados: 
devagar, ausente.


O POETA CERCADO 

O poeta está cercado. Espera-o 
um avô muito velho. As cartas chegam com pequenas manchas 
de lágrimas — alguém ao longe invoca 
o poeta cercado. E ele grita: 
afaste-se a noite. Mas vem a noite 
cercá-lo ainda mais. 
Uma casa com um avô muito velho 
manda revistas, soluços, cartas, 
apaga-se na distância. (Mas vem o medo 
cercá-lo ainda mais.) 

O poeta escreve os seus papéis 
furtivamente. 
Come com gestos lentos e imprecisos. 
Bebe em silêncio. Olha as matas em volta. 
Dorme enrolado no seu cobertor 
como o romeiro do Senhor da Serra, 
mas pior, e menos, porque não há deus. 

O poeta cintila penosamente 
entre o nevoeiro. 

Fernando Assis Pacheco nasceu em 1º de fevereiro de 1937 em Coimbra. Publicou uma dezena de livros de poemas e plaquetes de circulação restrita, entre os quais Cuidar dos vivos (1963), Catalabanza, Quilolo e Volta (1972), Memórias do contencioso (1980), Variações em Sousa (1987) e, postumamente, Respiração assistida (2003). Em 1991 reuniu os seus poemas em A musa irregular. Morreu em 30 de novembro de 1995, em Lisboa.


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