terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Três poemas de Maria Ângela Alvim




De tudo me afastei, por não querença
ou medo de demais querer a tudo
e de fixar em ócio e inexistência
o móbil ser ideal com que me iludo.

E de tudo herdei minha inocência,
este sentido de não ser, agudo,
vivo mistério e tão mortal ciência
que me aprendeu a ouvir o verso mudo.

A vida não vivi, hora distante
que nunca se deteve em meu caminho.
A imagem vista em ver era bastante.

Mas, se não sei nem mesmo o que devoro,
e me consome a mim, e é sozinho,
suor de aurora, poesia, eu fui teu poro.


NARCISO

Nesse líquido olhar reincidente
debruça o acontecer sua vaidade
e eis que te vejo, enfim, nesta corrente
ó minha face, tu és a realidade.

Num raso limite ergues o teu pente
e a imagem lavrada em tempo e idade
entre prismas, cristais, ora se evade
sem passado, futuro, e sem presente.

Tua metamorfose é um naufrágio manso
num longo rio de sangue infravermelho
onde eu não seria e súbito me alcanço.

Quanto te elides inda é teu o espaço
Narciso, sim, Narciso estás no espelho
em dia avesso, nessa noite de aço.


*
Mar.
O pássaro feriu o espelho e libertou a imagem.
Ouço o canto dos náufragos, dos reencontrados.
Espumas. Véus.
Boiaram os pensamentos das virgens.
São mensagens.
Eu descerei para as núpcias.

Maria Ângela Alvim nasceu a 1º de janeiro de 1926, na Fazenda do Pouso Alegre, município de Volta Grande, em Minas Gerais. Publicou um único livro em vida Superfície (1951). Postumamente, Lélia Coelho Frota edita a poesia reunida da poeta, pela primeira vez, em 1962 em Poemas; em 1980, uma segunda edição amplia essa obra, que inclui, além da poesia o texto em prosa Carta a um cortador de linho. Morreu no Rio de Janeiro a 19 de outubro de 1959.

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