terça-feira, 3 de março de 2020

Quatro poemas de Raul Pompeia




O MAR

Et cuncta, in quibus spiraculum
vitae est in terra, mortua sunt.
GÊNESIS. C. VIII. 22

Outrora, contra a maldade humana, indignou-se o mar. Ingênuo moralista, educado na contemplação constante das serenas esferas, sentiu que era muita a perversão dos homens.

E os homens com terror viram erguer-se contra eles a cólera das águas. O mar cresceu, cresceu.

Conspiradas com o mar, engrossaram as torrentes e as cataratas das nuvens desabaram. Correram as crianças para as mães; as mulheres, com o pavor no olhar, seminuas, cabelos ao vento, buscavam os amantes suplicando socorro, recordando na súplica os consumidos tesouros de carícias; evadidos da floresta alagada, fraternizavam no pânico os animais bravios com os homens. Os grandes da terra, em delírios de orgulho, ameaçavam com o punho, brandindo gestos de vingança.

O mar implacável subiu, a topar com as nuvens.

Hoje o mar é outro. As quilhas rasgaram-lhe a virgindade indômita. O divino justiceiro de outro tempo, experimentado e velho, fez-se cúmplice dos homens. Anda agora a transportar, de terra em terra, sobre as abatidas espáduas, o fardo das ambições e das tiranias.


A NOITE

                   Le ciel
Se ferme lentement comme une grande alcôve,
Et l'homme impatient se change en bête fauve.
C. BAUDELAIRE

Chamamos treva à noite. A noite vem do Oriente como a luz. Adiante, voam-lhe os gênios da sombra, distribuindo estrelas e pirilampos. A noite, soberana, desce. Por estranha magia revelam-se os fantasmas de súbito.

Saem as paixões más e obscenas; a hipocrisia descasca-se e aparece; levantam-se no escuro as vesgas traições, crispando os punhos ao cabo dos punhais; à sombra do bosque e nas ruas ermas, a alma perversa e a alma bestial encontram-se como amantes apalavrados; tresanda o miasma da orgia e da maldade suja o ambiente; cada nova lâmpada que se acende, cada lâmpada que expira é um olhar torvo ou um olhar lúbrico; familiares e insolentes, dão-se as mãos o vício e o crime dois bêbedos.

Longe daí a gemedora maternidade elabora a certeza das orgias vindouras.

E a escuridão, de pudor, cerra-se, mais intensa e mais negra.

Chamamos treva à noite a noite que nos revela a subnatureza dos homens e o espetáculo incomparável das estrelas.


A ARTE

Qui travaille de ses mains, pense, parle et écrit tout à la fois; et si, dans la république de l'esprit, il existe des places reservées pour les intelligences supérieures, l'homme de style doit céder la place à l'homme d'action.
(Idées Revolutionnaires)
PROUDHON

Um círculo de trevas, a realidade; esquecê-la é consolar-se. Desvairado pelas derrotas da realidade, o espírito evade-se para a embriaguez. A arte é a grande embriaguez do belo consolador.

Cantou com os pastores da primitiva humanidade, suavizando-lhes o rigor dos ásperos dias; educou-se nas montanhas do Oriente e emigrou para a Europa. Engrandecida pela força do gênio, ganhou mil formas, expandiu-se em todas as direções -- estrela imensa! Clareando o orbe inteiro e o recesso das almas, confortando, com o divino eflúvio, os corações deprimidos.

Semelhante ao fogo, o êxtase consome-se no próprio ardor. Passa a embriaguez dos sentidos, passa o entusiasmo inteligente da investigação; ficam a saciedade, a descrença, a fadiga, a morte. Extinta a chama, cinzas.

Os transportes do belo, não. A floresta das ilusões, assaltada pelo inverno, esfolha-se folha a folha; a arte persiste. Desfere ainda, em pleno extermínio das energias, o canto vitorioso do seu entusiasmo.

Farol de Leandro, imortal e culminante, domina impávido o naufragar das eras.

Feliz quem pode abismar-se no tempo ao clarão desse facho!


HISTÓRIA DE AMOR

An amor dolor sit,
An dolor amor rit,
Utrunque nescio!
Hoc unum sentio.
Jucundus dolor est,
Si dolor amor est.
Phoenix Expirans

Viviam sob os céus, doudos de amor, o Homem e a Onda.

E o Homem disse:

"Eu amo a Onda; amo-a em seus lânguidos folguedos com Anfítrite e as Nereidas; amo-a na inconstância, nas traições, nas femininas iras de tormenta. Extasio-me a vê-la nadando, nua, no mar manso, cabeleira flutuante, estrelada de ardentias, o luar vestindo-lhe em fina prata as níveas espáduas e os flancos; ou na batalha, altiva, bela guerreira! atacando em grita com as irmãs, os atrevidos penedos do litoral durante a aspérrima invernia.
A Onda conduz-me a tesouros secretos de âmbar, coral e pérolas; paços suntuosos de ouro e nácar; jardins fantásticos, onde em cardume os peixes passam como as aves no céu.

Quando me contempla, imita no olhar a profundidade do espaço; para me aparecer, cinge o colo de raios solares; às vezes, toma ao Oriente a estrela-d'alva e mostra-ma na mão.
Que te poderia oferecer; ó minha amada, a troco do teu amor e do teu olhar?"

— O teu amor!

O homem precipita-se à Onda e a Onda, regaço de esmeraldas, o acolhe no amor e na morte.

Raul Pompeia nasceu no dia 12 de abril de 1863 em Angra dos Reis. Ainda pequeno mudou-se para o Rio de Janeiro com a família. Publicou seu primeiro romance, Uma tragédia no Amazonas, em 1881. Começou o curso de Direito nesse ano e o envolvimento com a causa abolicionista e republicana findou por levá-lo a concluir sua formação no Recife. Nesse tempo publicou em folhetins do jornal Gazeta de notícias o seu segundo romance, As joias da coroa. Ao voltar para o Rio de Janeiro, continuou seu trabalho de intervenção nos jornais da época com textos de opinião, crônicas, contos e folhetins como O Ateneu, seu livro mais conhecido. Durante toda a vida trabalhou na revisão de um livro de poemas intitulado Canções sem metro. Envolvido em várias intrigas políticas, suicidou-se a 25 de dezembro de 1895.

* Os poemas publicados aqui são da seção “O ventre”, os dois primeiros, e “Vaidades”, os dois últimos da edição preparada por Gilberto Araújo (Editora da Unicamp, 2013).




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