O MAR
Et
cuncta, in quibus spiraculum
vitae est in terra, mortua sunt.
vitae est in terra, mortua sunt.
GÊNESIS. C.
VIII. 22
Outrora,
contra a maldade humana, indignou-se o mar. Ingênuo moralista, educado na
contemplação constante das serenas esferas, sentiu que era muita a perversão
dos homens.
E os homens
com terror viram erguer-se contra eles a cólera das águas. O mar cresceu,
cresceu.
Conspiradas
com o mar, engrossaram as torrentes e as cataratas das nuvens desabaram.
Correram as crianças para as mães; as mulheres, com o pavor no olhar, seminuas,
cabelos ao vento, buscavam os amantes suplicando socorro, recordando na súplica
os consumidos tesouros de carícias; evadidos da floresta alagada, fraternizavam
no pânico os animais bravios com os homens. Os grandes da terra, em delírios de
orgulho, ameaçavam com o punho, brandindo gestos de vingança.
O mar
implacável subiu, a topar com as nuvens.
Hoje o mar é
outro. As quilhas rasgaram-lhe a virgindade indômita. O divino justiceiro de
outro tempo, experimentado e velho, fez-se cúmplice dos homens. Anda agora a
transportar, de terra em terra, sobre as abatidas espáduas, o fardo das
ambições e das tiranias.
A NOITE
Le ciel
Se ferme lentement comme une grande alcôve,
Et l'homme impatient se change en bête fauve.
Se ferme lentement comme une grande alcôve,
Et l'homme impatient se change en bête fauve.
C.
BAUDELAIRE
Chamamos
treva à noite. A noite vem do Oriente como a luz. Adiante, voam-lhe os gênios
da sombra, distribuindo estrelas e pirilampos. A noite, soberana, desce. Por
estranha magia revelam-se os fantasmas de súbito.
Saem as
paixões más e obscenas; a hipocrisia descasca-se e aparece; levantam-se no
escuro as vesgas traições, crispando os punhos ao cabo dos punhais; à sombra do
bosque e nas ruas ermas, a alma perversa e a alma bestial encontram-se como
amantes apalavrados; tresanda o miasma da orgia e da maldade ―
suja o ambiente; cada nova lâmpada que se acende, cada lâmpada que expira é um
olhar torvo ou um olhar lúbrico; familiares e insolentes, dão-se as mãos o
vício e o crime ― dois bêbedos.
Longe daí a
gemedora maternidade elabora a certeza das orgias vindouras.
E a
escuridão, de pudor, cerra-se, mais intensa e mais negra.
Chamamos
treva à noite ― a noite que nos revela a subnatureza dos homens e o
espetáculo incomparável das estrelas.
A ARTE
Qui
travaille de ses mains, pense, parle et écrit tout à la fois; et si, dans la
république de l'esprit, il existe des places reservées pour les intelligences
supérieures, l'homme de style doit céder la place à l'homme d'action.
(Idées
Revolutionnaires)
PROUDHON
Um círculo
de trevas, a realidade; esquecê-la é consolar-se. Desvairado pelas derrotas da
realidade, o espírito evade-se para a embriaguez. A arte é a grande embriaguez
do belo consolador.
Cantou com
os pastores da primitiva humanidade, suavizando-lhes o rigor dos ásperos dias;
educou-se nas montanhas do Oriente e emigrou para a Europa. Engrandecida pela
força do gênio, ganhou mil formas, expandiu-se em todas as direções -- estrela
imensa! Clareando o orbe inteiro e o recesso das almas, confortando, com o
divino eflúvio, os corações deprimidos.
Semelhante
ao fogo, o êxtase consome-se no próprio ardor. Passa a embriaguez dos sentidos,
passa o entusiasmo inteligente da investigação; ficam a saciedade, a descrença,
a fadiga, a morte. Extinta a chama, cinzas.
Os
transportes do belo, não. A floresta das ilusões, assaltada pelo inverno,
esfolha-se folha a folha; a arte persiste. Desfere ainda, em pleno extermínio
das energias, o canto vitorioso do seu entusiasmo.
Farol de
Leandro, imortal e culminante, domina impávido o naufragar das eras.
Feliz quem
pode abismar-se no tempo ao clarão desse facho!
HISTÓRIA
DE AMOR
An amor
dolor sit,
An dolor amor rit,
Utrunque nescio!
Hoc unum sentio.
Jucundus dolor est,
Si dolor amor est.
Phoenix Expirans
An dolor amor rit,
Utrunque nescio!
Hoc unum sentio.
Jucundus dolor est,
Si dolor amor est.
Phoenix Expirans
Viviam sob
os céus, doudos de amor, o Homem e a Onda.
E o Homem
disse:
"Eu amo
a Onda; amo-a em seus lânguidos folguedos com Anfítrite e as Nereidas; amo-a na
inconstância, nas traições, nas femininas iras de tormenta. Extasio-me a vê-la
nadando, nua, no mar manso, cabeleira flutuante, estrelada de ardentias, o luar
vestindo-lhe em fina prata as níveas espáduas e os flancos; ou na batalha,
altiva, bela guerreira! atacando em grita com as irmãs, os atrevidos penedos do
litoral durante a aspérrima invernia.
A Onda
conduz-me a tesouros secretos de âmbar, coral e pérolas; paços suntuosos de
ouro e nácar; jardins fantásticos, onde em cardume os peixes passam como as
aves no céu.
Quando me
contempla, imita no olhar a profundidade do espaço; para me aparecer, cinge o
colo de raios solares; às vezes, toma ao Oriente a estrela-d'alva e mostra-ma
na mão.
Que te
poderia oferecer; ó minha amada, a troco do teu amor e do teu olhar?"
— O teu
amor!
O homem
precipita-se à Onda e a Onda, regaço de esmeraldas, o acolhe no amor e na
morte.
•
Raul Pompeia
nasceu no dia 12 de abril de 1863 em Angra dos Reis. Ainda pequeno mudou-se
para o Rio de Janeiro com a família. Publicou seu primeiro romance, Uma
tragédia no Amazonas, em 1881. Começou o curso de Direito nesse ano e o envolvimento
com a causa abolicionista e republicana findou por levá-lo a concluir sua formação
no Recife. Nesse tempo publicou em folhetins do jornal Gazeta de notícias
o seu segundo romance, As joias da coroa. Ao voltar para o Rio de
Janeiro, continuou seu trabalho de intervenção nos jornais da época com textos
de opinião, crônicas, contos e folhetins como O Ateneu, seu livro mais
conhecido. Durante toda a vida trabalhou na revisão de um livro de poemas
intitulado Canções sem metro. Envolvido em várias intrigas políticas, suicidou-se
a 25 de dezembro de 1895.
* Os poemas
publicados aqui são da seção “O ventre”, os dois primeiros, e “Vaidades”, os
dois últimos da edição preparada por Gilberto Araújo (Editora da Unicamp, 2013).
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