O BECO
a
Carlos Drummond de Andrade
Que se passa
naquele beco
onde nunca
estive?
Vislumbro o
muro de passagem:
sombras,
manchas, rastros
de
existência.
Quem o
habita, se é que o habita
alguém, se é
que o beco
existe como
existem
seres e
coisas que vejo?
Quem derrama
nesse recanto do universo
o sinal de
vida, a marca indelével
da matéria
organizada?
O que existe
fora do meu
alcance de
vista? Quem brinca
de esconder
quando relembro
o muro
caiado, a rua esquecida?
O que não
vejo, pressinto:
existe mesmo
ou é extinto
para mim,
ignorado
como esse
beco aonde nunca fui?
novembro
1980
DUPLO
Olho-me
adentro sem cessar e no silêncio
e na
penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim
que se esconde e se retrai no vago
espaço de
urna célula e vai construindo
outro mim de
mim, disposto em gêmeos compassos,
e não
aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente
em máscara, fechado à curio-
sidade de
meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz
enganosa, nem se derrama
sobre a
superfície polida e indiferente,
enquanto
cresce em mim a presença de estranho
ser não eu,
de irrevelada e própria pessoa,
que domina
esse meu corpo, casca de angústia
e
contradições simétricas envolventes,
e me explora
e me assimila; mas sou eu só
a me
percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois
corpos iguais matéria viva,
e me faço e
refaço e me desfaço sempre
e recomeço e
junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e
tudo abandono, dividido
entre mim e
mim na batalha interminável...
13 de março de 1975
CONFISSÃO
a lvan
Junqueira
Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.
•
Fernando Py
nasceu no Rio de Janeiro a 13 de junho de 1935. Foi poeta, crítico literário e
tradutor. Formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), em 1960, nunca advogou. Colaborou em diversos
jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre,
principalmente O Globo, Jornal do Brasil, Jornal
da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo.
Traduziu obras de autores importantes, como Marcel Proust (incluindo a
monumental Em busca do tempo perdido), romances de Alexandre Dumas,
Marguerite Duras, Balzac, Saul Bellow entre outros. Pesquisador da obra de
Carlos Drummond de Andrade, publicou Bibliografia comentada de Carlos
Drummond de Andrade (reeditada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, em
2002) e preparou a antologia Autorretrato e outras crônicas (Record, 2018). Estreou na poesia em 1962 com o livro Aurora de
vidro (Livraria São José); a este se seguiram títulos como A
construção e a crise (Simões Edições, 1969), Vozes do corpo (Fontana, 1981), Antiuniverso (Sette Letras / Editora Firmo, 1994)
e Sol nenhum (UAPÊ, 1998). Parte da sua obra literária foi reunida
em Confissão geral. Poemas reunidos (1959-2009) (Ibis Libris,
2010). Fernando Py morreu neste 21 de maio de 2020 em Petrópolis, Rio de
Janeiro.
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