quinta-feira, 21 de maio de 2020

Três poemas de Fernando Py




O BECO

a Carlos Drummond de Andrade


Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.

Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem 
seres e coisas que vejo?

Quem derrama nesse recanto do universo
o sinal de vida, a marca indelével
da matéria organizada?

O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?

O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?

novembro 1980


DUPLO

Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia
e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais matéria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...

13 de março de 1975


CONFISSÃO

a lvan Junqueira
 

Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.


Fernando Py nasceu no Rio de Janeiro a 13 de junho de 1935. Foi poeta, crítico literário e tradutor. Formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1960, nunca advogou. Colaborou em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, principalmente O Globo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo. Traduziu obras de autores importantes, como Marcel Proust (incluindo a monumental Em busca do tempo perdido), romances de Alexandre Dumas, Marguerite Duras, Balzac, Saul Bellow entre outros. Pesquisador da obra de Carlos Drummond de Andrade, publicou Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (reeditada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, em 2002) e preparou a antologia Autorretrato e outras crônicas (Record, 2018). Estreou na poesia em 1962 com o livro Aurora de vidro (Livraria São José); a este se seguiram títulos como A construção e a crise (Simões Edições, 1969), Vozes do corpo (Fontana, 1981), Antiuniverso (Sette Letras / Editora Firmo, 1994) e Sol nenhum (UAPÊ, 1998). Parte da sua obra literária foi reunida em Confissão geral. Poemas reunidos (1959-2009) (Ibis Libris, 2010). Fernando Py morreu neste 21 de maio de 2020 em Petrópolis, Rio de Janeiro.


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