CAPA
Ramos lianas folhas e fios tecem
a clara teia que seca a humidade
da voz dos carvalhos e
castanheiros
e apaga o fulgurante vermelho
dos zimbros
e depois
pintados de verde azul vêm
envolver e enredar a capa
deste caderno cujas páginas
reciclam a natureza
a máquina natural de atrair
e capturar a multidão mínima
dos encantados cantadores:
os pássaros e as demais coisas
escritas
pela grande aranha
que se baloiça contra
o travejamento tempestuoso desse
céu
que se despenha e incendeia
sobre os rios brancos do exílio.
O movimento que acontece à água
quando cai
seca nestas páginas translúcidas
que atravessam aquilo
que guardam: a memória
dos veios que amaciaram a terra
e dos ventos que a lavraram.
Assim impressa a marca da água
nestas páginas postas a secar
há que recordar a neve que coroa
o mundo que a exala e exalta.
Há que prolongar as manchas
que resistiram à lavagem do
inverno
e alargar as janelas onde a
transparência
enflora nas paisagens da cal a rósea
porcelana aérea, os limos do
tanque
esverdeado, os frutos redondos
do plátano vermelho
e as folhas azuis dos olivais
cujas sombras
o rio da pré-história consigo move.
VARIAÇÕES DO BRANCO
Ergues o olhar: surpreendes por
instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues
as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua
música, anterior à chuva
Ou será então a imagem submersa de
um filme a preto e branco
Há próximo um branco vibrante: o
da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a
espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na
varanda a que vens.
Não há ninguém aqui. Quem te
chame, digo.
Há o branco baço na parede que em
frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto
essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o
branco pobre da areia:
As dunas plenárias sustentam os
corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o
clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória
embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata —
uma lembrança vã.
Tu escreves no visível do mundo
essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz. As
folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas,
as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e
apaga na travessia os simulacros
das coisas supostas e imaginadas
que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que
não virá
•
Manuel Gusmão nasceu em 1945, em Évora.
Professor, ensaísta, tradutor e poeta. Da variada obra poética, com a qual
ganhou importantes prêmios no meio literário, como o Prêmio D. Diniz (2004) e o
Prêmio Vergílio Ferreira (2005), destacam-se títulos como: Mapas: o assombro e a sombra (1996), Migrações do fogo (2004) e A terceira mão
(2008).
Nenhum comentário:
Postar um comentário