terça-feira, 23 de junho de 2020

Dois poemas de Manuel Gusmão




CAPA

Ramos lianas folhas e fios tecem
a clara teia que seca a humidade
da voz dos carvalhos e castanheiros
e apaga o fulgurante vermelho
dos zimbros
e depois
pintados de verde azul vêm
envolver e enredar a capa
deste caderno cujas páginas
reciclam a natureza
a máquina natural de atrair
e capturar a multidão mínima
dos encantados cantadores:
os pássaros e as demais coisas
escritas
pela grande aranha
que se baloiça contra
o travejamento tempestuoso desse céu
que se despenha e incendeia
sobre os rios brancos do exílio.

O movimento que acontece à água
quando cai
seca nestas páginas translúcidas
que atravessam aquilo
que guardam: a memória
dos veios que amaciaram a terra
e dos ventos que a lavraram.
Assim impressa a marca da água
nestas páginas postas a secar
há que recordar a neve que coroa
o mundo que a exala e exalta.
Há que prolongar as manchas
que resistiram à lavagem do inverno
e alargar as janelas onde a transparência
enflora nas paisagens da cal a rósea
porcelana aérea, os limos do tanque
esverdeado, os frutos redondos
do plátano vermelho
e as folhas azuis dos olivais cujas sombras
o rio da pré-história consigo move.


VARIAÇÕES DO BRANCO

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata — uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá

Manuel Gusmão nasceu em 1945, em Évora. Professor, ensaísta, tradutor e poeta. Da variada obra poética, com a qual ganhou importantes prêmios no meio literário, como o Prêmio D. Diniz (2004) e o Prêmio Vergílio Ferreira (2005), destacam-se títulos como: Mapas: o assombro e a sombra (1996), Migrações do fogo (2004) e A terceira mão (2008).

Nenhum comentário:

Postar um comentário