SAUDADE
quer dizer nostalgia, fiquei a saber, mas também
nostalgia do que nunca foi. Mas não é
a mesma coisa? Num café
do Rio moscas coroam o meu copo.
Como te terias deliciado com isto: o empregado
a escurecer de suor a camisa de rede. Crianças
a trotar de fatinho ou calção comprido arrastando
brinquedos e toalhas rumo à praia. Falamos,
ou falo eu, imagino a tua resposta, o calor a toldar-nos a vista.
Aqui, outra vez, o desgosto vertido na sua mais cruel tradução:
o meu tu imaginado é tudo o que me resta de ti.
quer dizer nostalgia, fiquei a saber, mas também
nostalgia do que nunca foi. Mas não é
a mesma coisa? Num café
do Rio moscas coroam o meu copo.
Como te terias deliciado com isto: o empregado
a escurecer de suor a camisa de rede. Crianças
a trotar de fatinho ou calção comprido arrastando
brinquedos e toalhas rumo à praia. Falamos,
ou falo eu, imagino a tua resposta, o calor a toldar-nos a vista.
Aqui, outra vez, o desgosto vertido na sua mais cruel tradução:
o meu tu imaginado é tudo o que me resta de ti.
ROCKLIN
Via-a a ganhar corpo no declive
côncavo
das nossas encostas, árvores que
sumiam
mês após mês para dar lugar à
estrada plana,
escolas vazias, terrenos esquartejados
e ruas sem saída,
casas inacabadas, nas bermas bandas
sonoras a tornear
as estradas em largos sorrisos de
cimento. Íamos
para lá nos carros dos nossos pais
– passando
as vivendas principescas – rumo a
cruzamentos em rosa
dos ventos, semáforos amortalhados
em musselina,
no baloiço lento da brisa morna do
verão,
o ar tão denso de pinho que se
ouvia
o martelar das obras a milhas de
distância.
Uma cidade fantasma, fora aquele
som. Íamos
sentar-nos no estádio do liceu, por
acabar, na borda
do que mais tarde seriam as
bancadas, ao longe, ainda
a meio, um multiplex, e dali ouvíamos
o nada
a ganhar forma, à espera que
virasse púrpura
o céu, e serenasse o trânsito.
Aí, quando a hora de recolher se
avultava, arrepiávamos
caminho a abrir pela cidade agora
espraiada, os rádios
aos berros a abafar o coração aos
solavancos, o gemido
dos pneus no veludo das vias. Sentíamos
que não
acabaria nunca – o céu sem nada, a
cidade sem importância,
e sustínhamos a respiração ao
desligar os faróis
para às cegas corrermos os semáforos
de seguida.
ENCOBRIMENTO
Se
pudéssemos
traçar um atlas
da dor, a maior
porção da terra
seria terra
incógnita.
BEIRUTE
Para N
Aquele depósito de água
enferrujado a cair
aos bocados era a sala de cinema
onde amantes se sentavam em desassossegos
de fumo
enquanto James Bond acendia os
seus cigarros.
O centro comercial espelhado onde
havia
calças de ganga justas e relógios
que piscavam
fora outrora o souk, onde um
velhote
vendia za’aatar por uma mão
cheia de trocos.
Aqui, na esquina, foi onde um dia
o teu pai explicou a uma arma
colocada à boca:
estava só a voltar ao apartamento
para ir buscar o cão que tu lá
deixaras, e aqui o apartamento
cedido ao senhor director do
Deuxième Bureau,
pois quando um homem desses pede
um favor,
não é um pedido, não há como dizer
que não.
Esta esquina aqui, com o sol aceso
no horizonte
próximo, onde Marianne foi
atingida por um tiro
que lhe abriu um buraco na boca e
se perguntava,
por terra, se outra bala se
seguiria. Aqui mesmo,
na loja onde encontrámos a mesa em
madre-
pérola, o hotel onde atiradores
furtivos faziam
a vez de deuses e sobre cadáveres na
rua esvoaçavam
as moscas quando os corpos ali de
rojo estavam
somente feridos, eram ainda alvos
a abater. Aqui,
onde cada lugar era um outro lugar
e as placas de rua apontam para
Paris e
a cidade invisível chama-nos
através dos seus
sarcófagos milenares, aqui nos
movemos como
espectros. A luz não é de fiar. Tão
fácil que era
mudar-lhe o rumo. Orientamo-nos no
ventre
da noite, no encalço do vento, à
escuta de um
súbito som, à espera do travo a
cinza.
•
John Freeman nasceu em 1974, nos
Estados Unidos. Escritor e crítico literário. Sua estreia na poesia se deu com
o livro Mapas.
* Traduções de Miguel Cardoso.
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