terça-feira, 16 de junho de 2020

Quatro poemas de John Freeman




SAUDADE

quer dizer nostalgia, fiquei a saber, mas também
nostalgia do que nunca foi. Mas não é
a mesma coisa? Num café
do Rio moscas coroam o meu copo.

Como te terias deliciado com isto: o empregado
a escurecer de suor a camisa de rede. Crianças
a trotar de fatinho ou calção comprido arrastando
brinquedos e toalhas rumo à praia. Falamos,

ou falo eu, imagino a tua resposta, o calor a toldar-nos a vista.
Aqui, outra vez, o desgosto vertido na sua mais cruel tradução:
o meu tu imaginado é tudo o que me resta de ti.


ROCKLIN

Via-a a ganhar corpo no declive côncavo
das nossas encostas, árvores que sumiam
mês após mês para dar lugar à estrada plana,
escolas vazias, terrenos esquartejados e ruas sem saída,
casas inacabadas, nas bermas bandas sonoras a tornear
as estradas em largos sorrisos de cimento. Íamos

para lá nos carros dos nossos pais – passando
as vivendas principescas – rumo a cruzamentos em rosa
dos ventos, semáforos amortalhados em musselina,
no baloiço lento da brisa morna do verão,
o ar tão denso de pinho que se ouvia
o martelar das obras a milhas de distância.

Uma cidade fantasma, fora aquele som. Íamos
sentar-nos no estádio do liceu, por acabar, na borda
do que mais tarde seriam as bancadas, ao longe, ainda
a meio, um multiplex, e dali ouvíamos o nada
a ganhar forma, à espera que virasse púrpura
o céu, e serenasse o trânsito.

Aí, quando a hora de recolher se avultava, arrepiávamos
caminho a abrir pela cidade agora espraiada, os rádios
aos berros a abafar o coração aos solavancos, o gemido
dos pneus no veludo das vias. Sentíamos que não
acabaria nunca – o céu sem nada, a cidade sem importância,
e sustínhamos a respiração ao desligar os faróis
para às cegas corrermos os semáforos de seguida.


ENCOBRIMENTO

Se
pudéssemos
traçar um atlas
da dor, a maior
porção da terra
seria terra
incógnita.


BEIRUTE

Para N

Aquele depósito de água enferrujado a cair
aos bocados era a sala de cinema
onde amantes se sentavam em desassossegos de fumo
enquanto James Bond acendia os seus cigarros.
O centro comercial espelhado onde havia
calças de ganga justas e relógios que piscavam
fora outrora o souk, onde um velhote
vendia za’aatar por uma mão cheia de trocos.

Aqui, na esquina, foi onde um dia
o teu pai explicou a uma arma colocada à boca:
estava só a voltar ao apartamento
para ir buscar o cão que tu lá
deixaras, e aqui o apartamento
cedido ao senhor director do Deuxième Bureau,
pois quando um homem desses pede um favor,
não é um pedido, não há como dizer que não.

Esta esquina aqui, com o sol aceso no horizonte
próximo, onde Marianne foi atingida por um tiro
que lhe abriu um buraco na boca e se perguntava,
por terra, se outra bala se seguiria. Aqui mesmo,
na loja onde encontrámos a mesa em madre-
pérola, o hotel onde atiradores furtivos faziam
a vez de deuses e sobre cadáveres na rua esvoaçavam
as moscas quando os corpos ali de rojo estavam
somente feridos, eram ainda alvos a abater. Aqui,

onde cada lugar era um outro lugar
e as placas de rua apontam para Paris e
a cidade invisível chama-nos através dos seus
sarcófagos milenares, aqui nos movemos como
espectros. A luz não é de fiar. Tão fácil que era
mudar-lhe o rumo. Orientamo-nos no ventre
da noite, no encalço do vento, à escuta de um
súbito som, à espera do travo a cinza.

John Freeman nasceu em 1974, nos Estados Unidos. Escritor e crítico literário. Sua estreia na poesia se deu com o livro Mapas.

* Traduções de Miguel Cardoso.

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