NA NOITE DA MINHA MORTE
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao
encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua
mágoa
Serão tão surdos como o menino
acabado de esquecer.
Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um
perfume...
Há de haver velas pela casa
E xales negros e um silêncio que
eu
Poderia entender.
Mãe: talvez os teus olhos cansados
de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles
ouçam, no silêncio da casa velando,
Uma voz serena de infância, tão
clara e tão longínqua...
E mesmo que não saibas de onde vem
nem porque vem
Talvez só tu a não esqueças.
ÚLTIMAS DISPOSIÇÕES DO H.M.E.
Para começar tirem-me este trapo
da cara, que faz cócegas
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.
Levem a coroa de latão de cima do
meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.
Rezem as orações a um telefone
antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.
O Bispo que fique em casa e se
emborrache,
dêem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.
dêem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).
E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma Ruazinha para pássaros.
Na minha mala há muito papel
amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão-de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.
fazer com ele avionettes que hão-de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.
O mais que fica (umas cuecas, um
isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.
Quanto à ressureição da carne,
entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!
Na banca de cabeceira há ainda
alguns cigarros.
AO MEU CÃO
Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo
dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios,
cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o
pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a
tua gratidão.
Não percebi a evidência de que ias
morrer
E gostavas da minha companhia por
uma noite,
Que te seria tão doce a minha
simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira
incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e
humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior
angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia,
tão aflito, tão só e sossegado.
•
Cristovam Pavia nasceu em Lisboa a
7 de outubro de 1933. Seu primeiro e único livro publicado em vida data de
1959, 35 poemas. Antes disso, colaborou com vários jornais e revistas no
seu país sob diversos pseudônimos. Morreu na cidade onde nasceu e para a qual
retornou depois de morar em Castelo de Vide, Paris e Heidelberg no dia 13 de
outubro de 1968.
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