terça-feira, 14 de julho de 2020

Dois poemas de Ruy Guilherme Barata



AUTORRETRATO
 
Entre a espuma e a navalha sou legenda.
O espelho neutraliza o ângulo da morte,
a barba estrangulou a metafísica
e o problema do mal é bem remoto.
Aqui sim.
Aqui resistirei à mímica,
ao dicionário e ao laboratório.
(a herança do punhal brilha de novo
o fantasma de Abel não me intimida)
Vejo a testa crescer
entre espirais de fumo,
o olhar que não vacila
da ruga à pré-história
e o peito rasgado
pela fúria do poema.
 
Aqui sim,
aqui iniciarei a espécie nova,
aqui derrotarei o homem-harpa
e pronto estou para a descoberta do sexo.
O pincel dá-me o poder do patriarca,
a navalha reduz a timidez e o medo,
o palavrão rola na boca e salva o mundo.
 
 
CANÇÃO DOS QUARENTA ANOS
 
Poema, suspende a taça
pelos dias que vivi.
Espelho, diz-me em que jaça
mais fiel me refleti.
Quarenta anos correram
e neles também corri.
 
Quarenta anos, quarenta.
Quantos mais inda virão?
Morrerei hoje de infarto
ou amanhã de solidão?
Serei pasto da malária?
Serei presa do avião?
 
A morte engendra esperança.
A morte sabe fingir.
A morte apaga a lembrança
da morte que vai ferir.
E em cada instante que passa
a morte pode surgir.
 
Quem pode medir um homem?
Quem pode um homem julgar?
Um homem é terra de sonhos,
sonho é mundo a decifrar.
Naveguei ontem no vento,
hoje cavalgo no mar.
 
Hoje sou. Ontem não era.
Amanhã de quem serei?
Um homem é sempre segredos.
Por qual deles purgarei?
Dos meus netos, qual o neto
em que me repetirei?
 
Que virtudes foram minhas?
Que pecados confessar?
Que territórios de enganos
a meus filhos vou legar?
A quem passarei meu canto
quando meu canto passar?
Ah! Como a vida é ligeira!
Ah! Como o tempo deflui!
Esse espelho não mais fala
da criança que já fui.
Das minhas rugas ruindo
apenas um nome rui.
 
Quedê rede balançando?
Quedê peixinhos do mar?
Quedê figo da figueira
pro passarinho bicar?
E o anel que tu me deste
em que dedo foi parar?
 
Dezembro chama janeiro.
Fevereiro irá chamar?
Monte-Cristo se me visse
não iria acreditar.
Como está velho, diria
a donzela Dagmar.
 
Um homem cresce espalhando
o reino em que foi feliz.
Onde Athos? Porthos?
Onde o tímido Aramis?
Um homem cresce querendo
e cresce quando não quis.
 
Crescer é rima de vida,
mas também é de morrer.
Crescer é terna ferida
que só dói no entardecer.
Em cada raiz da morte
há sempre um verbo crescer.
 
E cresço: macho e poeta.
Subo em linha, volto em cor.
Cresço violentamente.
Cresço em rajadas de amor.
Cresço nos filhos crescendo.
Cresço depois que me for.
 
Cresço em tempo de eternidade,
cresço em luta, cresço em dor,
não fiz meu verso castrado
nem me rendo ao opressor.
Cresço no povo crescendo,
cresço depois que me for.
 
E cresço na aurora livre
galopando esse corcel.
Cresço no verso espumando
entre as linhas do papel.
Cresço rubro de esperança
na barba de Don Fidel.
 
Quarenta anos, quarenta.
E nem sequer percebi.
Quarenta anos correram
e neles também corri.
E nesses quarenta anos,
oitenta de amor por ti.
 
Ruy Guilherme Paranatinga Barata nasceu a 25 de junho de 1920 em Santarém. Filho de uma geração rica de criadores intelectuais, é uma das primeiras vozes singulares do homem amazônico, na linha dos feitos por outros escritores da região Norte do Brasil. Situado entre o simbolismo e a poesia social, a obra poética de Ruy Barata está publicada em Anjo dos abismos (1943), A linha imaginária (1951), Violão de rua (1962) e Antilogia (2000). No livro crítico-biográfico sobre sua obra, Paranatinga (1984), escrito por Alfredo Oliveira, também aparece um conjunto de poemas do poeta. Ruy Barata morreu em São Paulo no dia 23 de abril de 1990.
 

 

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