terça-feira, 7 de julho de 2020

Quatro poemas de Carlos Pena Filho

 


 
A SOLIDÃO E SUA PORTA

A Francisco Brennand
 
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
 
Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
 
Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.
 
 
SONETO DAS METAMORFOSES

Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.
 
Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.
 
E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.
 
Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.
 
 
SONETO DO DESMANTELO AZUL
 
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
 
 
TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
 
Carlos Pena Filho nasceu a 17 de maio de 1929 em Recife. Viveu parte de sua vida em Portugal com os avós paternos; no retorno ao Brasil, formou-se em Direito. Neste período participa ativamente da vida polícia na universidade. Escreveu para os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Comércio. Seu primeiro livro aparece em 1952, O tempo da busca, seguido de Memórias do boi Serapião (1956), A vertigem lúcida (1957) e Livro geral (1959); este último reunia toda a obra publicada até então com poemas inéditos. Com o livro recebeu o Prêmio do Instituto do Livro. Morreu vítima de um acidente automobilístico a 1º de julho de 1960.

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