terça-feira, 20 de outubro de 2020

Três poemas de Cruzeiro Seixas



UM BARCO SONHA COM OUTRO BARCO
oferece-lhe orquídeas de som
um túmulo gótico limos todo o mistério
lá onde a abóbada assenta sobre a coluna vertebral
que guarda palavras algemadas
e os passos dos peregrinos a caminho da ausência.
 
Estamos a um dia do fim de qualquer coisa.
Pela mão que guardo em todos os peitos
pelo contínuo marulhar na solidão na minha fronte
por esta maresia que vinda do sonho
sobe e sufoca
pela noite que se exprime no mais profundo de cada dia
ofereço-te a eternidade
como um trapo velho dentro de mim.
 
Todos os comboios atravessam o meu corpo
todos os diamantes se suicidam à minha porta
todas as mãos têm movimentos copiados do mar.
 
Ao meu lado sobre mim dentro de mim
como ao fim das tardes no inferno
o segredo que a sete chaves guardamos
passam-no agora as árvores em voz baixa uma às outras.
 
Oh meu amor o fim não existe tudo é recomeço
e tudo recomeça pelo fim.
Não esqueças esses momentos de transgressão
mais vida do que a vida
como o cavalo que corre dentro de si próprio
cego
até o infinito que não há.
 
 
A TUA BOCA ADORMECEU
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.
 
Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.
 
E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.
 
As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.
 
Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.
 
 
POEMA
 
Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.
 
Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.
 
Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.
 
Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.
 
Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.
 
Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.
 
Cruzeiro Seixas nasceu em Amadora a 3 de dezembro de 1920. Iniciou sua carreira aproximando-se do neorrealismo e depois aderiu ao surrealismo, compondo com nomes como Mário Cesariny a base fundamental deste movimento em Portugal. Autor de vasta obra que obre as artes plásticas em suas múltiplas manifestações e a poesia. Morreu a 8 de novembro de 2020, em Lisboa.
 
 

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