hoje estou só para penas
hoje não tenho amigos,
hoje só tenho ânsias
de arrancar-me inteiro o coração
e pô-lo debaixo de um sapato.
hoje é dia de prantos em meu reino,
hoje descarrega em meu peito o desalento
chumbo desalentado.
E procuro a morte pelas mãos
Olhando com carinho as navalhas,
e lembro-me daquele punham companheiro,
e penso nos mais altos campanários
para um sereno salto mortal.
meu coração escreveria uma última carta,
uma carta que trago aqui guardada,
faria um tinteiro do meu coração,
uma fonte de sílabas, de adeuses e legados,
e um até breve diria ao mundo.
Tenho a dor de uma só dor
que vale mais que toda a alegria.
e não posso mais reagir.
Não vês como minha boca está desprezível,
como estão disformes meus olhos?
cortar esta dor com que tesoura?
padecendo por tudo
meu coração, aquário melancólico,
prisão de rouxinóis enfermos.
Hoje me acovardo,
eu entre os homens o mais corajoso,
e por ser o mais, também o mais amargo.
me perdoo cada dia a vida.
se não é amor o fim.
Tristes, tristes.
se não são as palavras.
Tristes, tristes.
se não morrem de amores.
Tristes, tristes.
a do amor,
a da morte,
a da vida.
a da vida,
a do amor,
a da morte.
a da morte,
a da vida,
a do amor.
quando o que pena, pena malferido,
pena de desamparo desabrido,
pena de solidão de apaixonado.
com palidez, fervor e aflição
do seu ninho da imensa solidão
este amoroso grito, melindrado?
ao silêncio cruel e favorável
a expressar seu pranto de viuvez?
com uma devoção inesgotável
e me ouve a montanha em sua mudez.
já tão bem nascida para o marinho ofício;
ser graciosa e morena é teu exercício
e tua virtude mais exemplar o desvelo.
dando do vento forte e claro um negro indício,
mudar o rumo de marfim e de artifício
de tua capilar borrasca é meu desejo.
nem tenho outro prazer que não seja mirar-te,
ao redor girando de tua esfera de amor.
Que não tenha por finalidade lembrar-te
— Dá-te, minha carcereira, presa de amor.
•
Miguel Hernández nasceu a 30 de outubro de 1910 em Alicante, Espanha. Largou os estudos logo cedo para cuidar das atividades rurais com o pai. Em 1937, depois de participar do Congresso de Escritores Antifascistas, visita a Rússia. Sua ligação política com a militância o leva à prisão dois anos mais tarde, quando tentava fugir de seu país para Portugal. Passa por Sevilha, Madri e retorna a Alicante onde morre a 28 de março de 1942 no Reformatório de Adultos desta província. Entre os livros que escreveu estão Perito en lunas (1933), El rayo que no cesa (1936) e Viento del Pueblo (1937).
* Traduções de José Cláudio de Almeida Abreu, publicadas inicialmente na revista Caligrama, edição n.1, de 1981.
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