A CANÇÃO DA FELICIDADE
O sorriso que levas a outras bocas
e que as enche das ilusões mais loucas,
veem a mim sob a forma de saudade.
que todos conseguiram, menos eu.
Saudade de uma estranha criatura
que devia ser minha e já morreu.
tão vazia, tão áspera e tão triste!
Será verdade que o prazer existe?
Felicidade, não tens nada para mim?
nem ao menos me reste um pouco desse vinho
que dás aos outros a beber, pelo caminho
onde minha alma, quase morta, passa?
ai, lábios de mulher que eu não beijei!
Mãos amorosas, mãos macias de veludo
que me espancaram, quando desejei!
Ânfora cheia do perfume de mil bocas,
perfume cheio de carícias loucas,
eu só conheço a tua irmã saudade!
a ouvir o borbulhar da água que canta e chora
por sob as pontes, num eterno diapasão,
como se o rio fosse a música do chão,
o poeta sonha.
Alguém passa a assobiar umas notas trinadas.
O ar amortece... A brisa é terna como um beijo,
nos olhos... E, ao sabor da brisa, sem desejo,
sem ânsias e sem dor, erra o seu pensamento,
vadiante, como um pássaro ao relento...
que os contornos suaviza e que as folhas encarde,
e esse esparso langor da hora crepuscular,
em que tudo parece extático a sonhar,
acordam na sua alma ignota melodia:
memória... evocação... delícia... nostalgia...
trêmulos de asas, sons, ruídos, onde passa
a eterna inquietação do crepúsculo... E quando,
no céu amplo e disperso,
nasce a primeira estrela cintilando,
nasce o primeiro verso...
— Stéphane Mallarmé.
Que le vent du matin vient glacer à mon front.
— Paul Verlaine
da noite e do silêncio das estradas
ermas, por onde vim com o pensamento
cheio de ti e de arrependimento,
estas flores silvestres que trescalam
perfumes fortes como as bocas falam.
Colhidas, como sonhos, no caminho
em que voltava para o teu carinho,
que elas te digam a ternura ansiosa
que houve na grande noite harmoniosa
que fez o esquecimento e fez as flores
do silêncio das horas interiores...
E, de aspirá-las, sentirás no ouvido
um barulho de folhas, um zumbido
de asas e uma frescura de água boa
como um olhar suave que perdoa...
•
Onestaldo de Pennafort nasceu no Rio
de Janeiro em 1902, cidade onde viveu toda a vida e morreu em 1987. Com o curso
de humanidades, iniciou Direito, sem concluir o bacharelado. Começou a escrever
ainda jovem vários jornais e revistas brasileiras como a Fon-fon, Careta,
O malho, entre outros. Sua carreira literária começa ainda aos dezenove
anos com a publicação de Escombros floridos. Mais tarde vieram livros
como Perfumes e outros poemas (1924), Interior e outros poemas
(1927), A mulher do destino (1928), Espelho d´água. Jogos da
noite (1931). Exímio tradutor, verteu para o português poemas de Paul
Verlaine, Guillaume Apollinaire, Jean Cocteau e Stéphane Mallarmé. Em 1955 recebeu
o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra e no ano seguinte o Prêmio da Associação
Paulista de Críticos de Arte pela tradução de Otelo, de William
Shakespeare.
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