UM LIVRO, UM VASO, NADA
entre os livros a minha solidão,
abro a porta aos oráculos,
fundo a minha alma com o fogo
do salmista.
Que contrária
vontade de perigo me desvela,
quebra a vigilante
sede de viver na minha palavra.
Todas
as noites vivo inutilmente
a frustração do dia, recupero
as horas mortas da minha liberdade,
consisto no que fui.
(Mão esquecida entre os lençóis
rasga papéis, mancha o último
pedaço do meu sonho.)
Oh coração
sem ninguém – para quê
tantas páginas vãs, tantos
hinos vazios? Olha
em teu redor – que fica? Estamos
sós: toda
a vida cabe entre o calar
e o sonho. Aqui
a minha solidão é a minha alegria:
um livro, um vaso, um nada.
que vivemos juntos
na noite inconsciente.
o espaço em que às cegas nos
buscamos,
deixam nas proximidades
da luz um indício
de sombras de perguntas nunca
feitas.
Em vão recorremos
a distância que resta entre as últimas
suspeitas de estarmos sós,
já convencidos talvez dessa interina
realidade que avaliza sempre
o trâmite do sonho.
* Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto
•
José Manuel Caballero Bonald
nasceu a 11 de novembro de 1926 em Jerez Fronteira. Cursou Filosofia e Letras
em Sevilha, período quando inicia seu contato com o grupo da revista Cántico.
Logo publica seu primeiro livro de poemas, As adivinhações (1952). Veio
para a Colômbia e em Bogotá escreveu seu primeiro romance, Dois dias de
setembro. Filiado ao Partido Comunista espanhol sem nunca ter sido um militante,
fez da literatura espaço para a luta contra o regime sanguinário de Franco.
Além de poesia — gênero no qual ficou destacado — e romance, escreveu vasta
obra ensaística. Da longa lista de premiações, destacam-se o Prêmio Rainha Sofia
de Poesia Ibero-Americana (2004) e o Prêmio Cervantes. Morreu em Madri, a 9 de
maio de 2021.
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