NÃO NECESSARIAMENTE UMA PALAVRA
no sangue no recato no pudor
há versos que quem os sente fica sem saber
se está doente ou tonto e se o melhor
não será disfarçar para que ninguém
repare na mudança
da fala do andar do gesto
ou até do silêncio. Um poema infiltra-se. Salta por dentro
rompe todos os diques da convenção
ninguém pode conter um poema
mesmo que seja apenas
uma vogal que de repente fica azul
ou uma consoante que desata a rabiar
ninguém pode conter essa toada
esse tremor de terra que sem que se dê por isso
altera subitamente a vida
e acende nas artérias mais obscuras
não necessariamente uma palavra
mas um fogo submerso
uma espécie de pedra cintilante
um fluxo de lava. Ainda que se não saiba é já um verso
algo que bate fundo
como a sílaba cantante
do poema do mundo.
contra um tempo de ter mais do que ser
contra a ordem fundada em compra e venda
contra a vida que mói até doer
E onde amor se procura e não se encontra
onde a vida se mede a tanto e tanto
onde a mentira impera — aí sou contra.
Que se o tempo é de grades eu resisto
e quando alguns se calam não me calo.
Por isso me deitaram mau olhado
e por isso persisto e canto e falo.
com todos em confronto ou só comigo
a minha vida é sempre esta guerrilha
dá-me Senhor a paz que não consigo.
ou talvez não encontre a que me abra
ao fim de cada porta a outra porta
onde está noite ou luz essa palavra.
numa batalha há muito já esquecida
tudo é esse instante e esse arrepio
entre a paz e a guerra a morte e a vida.
que dia a dia travo a sós comigo.
Não sei se há um sentido: eu não encontro.
Dá-me Senhor a paz que não consigo.
•
Manuel Alegre nasceu a 12 de maio
de 1936, em Águeda. Sua carreira literária começa na década de sessenta do século
XX com a publicação de poemas nas revistas Briosa, Vértice e Via
Latina. Autor de vasta obra poética e prosaica (ficção, ensaio, crônica, conto)
reconhecida entre alguns dos certames mais importantes como o Prêmio da Crítica
da Associação Portuguesa de Críticos Literários, o Prêmio Fernando Namora e
Prêmio Camões.
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