terça-feira, 13 de abril de 2021

Três poemas de Manuel Alegre



NÃO NECESSARIAMENTE UMA PALAVRA
 
Há versos silenciosos ocultos submersos
no sangue no recato no pudor
há versos que quem os sente fica sem saber
se está doente ou tonto e se o melhor
não será disfarçar para que ninguém
repare na mudança
da fala do andar do gesto
ou até do silêncio. Um poema infiltra-se. Salta por dentro
rompe todos os diques da convenção
ninguém pode conter um poema
mesmo que seja apenas
uma vogal que de repente fica azul
ou uma consoante que desata a rabiar
ninguém pode conter essa toada
esse tremor de terra que sem que se dê por isso
altera subitamente a vida
e acende nas artérias mais obscuras
não necessariamente uma palavra
mas um fogo submerso
uma espécie de pedra cintilante
um fluxo de lava. Ainda que se não saiba é já um verso
algo que bate fundo
como a sílaba cantante
do poema do mundo.
 
 
O DÉCIMO SONETO DO PORTUGUÊS ERRANTE
 
Contra a usura e o juro contra a renda
contra um tempo de ter mais do que ser
contra a ordem fundada em compra e venda
contra a vida que mói até doer
 
contra a força que oprime — aí eu canto.
E onde amor se procura e não se encontra
onde a vida se mede a tanto e tanto
onde a mentira impera — aí sou contra.
 
E por isso incomodo e sou mal visto.
Que se o tempo é de grades eu resisto
e quando alguns se calam não me calo.
 
Eu sou o renitente o inconformado.
Por isso me deitaram mau olhado
e por isso persisto e canto e falo.
 
 
UMA BALA PASSOU
 
Agora sei que sou eu próprio a ilha
com todos em confronto ou só comigo
a minha vida é sempre esta guerrilha
dá-me Senhor a paz que não consigo.
 
Já nenhuma palavra me conforta
ou talvez não encontre a que me abra
ao fim de cada porta a outra porta
onde está noite ou luz essa palavra.
 
Uma bala passou como assobio
numa batalha há muito já esquecida
tudo é esse instante e esse arrepio
entre a paz e a guerra a morte e a vida.
 
Uma bala passou não o confronto
que dia a dia travo a sós comigo.
Não sei se há um sentido: eu não encontro.
Dá-me Senhor a paz que não consigo.
 
Manuel Alegre nasceu a 12 de maio de 1936, em Águeda. Sua carreira literária começa na década de sessenta do século XX com a publicação de poemas nas revistas Briosa, Vértice e Via Latina. Autor de vasta obra poética e prosaica (ficção, ensaio, crônica, conto) reconhecida entre alguns dos certames mais importantes como o Prêmio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, o Prêmio Fernando Namora e Prêmio Camões.

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