LIMIAR
No corpo, onde tudo tem seu preço,
eu era um mendigo. Ajoelhado,
olhava, pela fechadura, não
o homem no banho, mas a chuva
a atravessar seu corpo: cordas de guitarra a
estalar sobre ombros em forma de globo.
Ele cantava, e é por isso
que eu lembro. Sua voz —
me preenchia até o osso
como um esqueleto. Até mesmo meu nome
se ajoelhava dentro de mim, pedindo
para ser poupado.
Ele cantava. É tudo que lembro.
Pois no corpo, onde tudo tem seu preço,
eu estava vivo. Eu não sabia
que havia motivo melhor.
Que certa manhã meu pai ia parar
— potro negro em tempestade —
& tentar escutar minha respiração contida
atrás da porta. Eu não sabia que o custo
de entrar numa canção — era perder
o caminho de volta.
Por isso entrei. Por isso perdi.
Perdi tudo com meus olhos
bem abertos.
AUTORRETRATO COMO FERIMENTOS DE SAÍDA
Deixe, ao invés, que seja ele o eco de cada passada
afogada na chuva, que aleije o ar como um nome
jogado num barco que afunda, e respingue na casca da paina
após passar pelo podre & pelo ferro de uma cidade que tenta esquecer
os ossários que há sob as calçadas, depois vá e atravesse
o campo de refugiados, enfermo de fumaça e hinos cantados
até a metade, um barracão enegrecido de ferrugem & onde queima
a última vela de Bà Ngoại's, as faces dos sapos que temos nas mãos
& confundimos com irmãos, que entre num salão iluminado
pela neve, cuja única mobília é o som do riso, lá onde pão
& maionese são içados a lábios rachados como prova
de um triunfo de que ninguém se lembra mais, que limpe o rosto corado
do recém-nascido enquanto o pai pega nos braços, todo enrolado
em vísceras de peixe & Marlboros, todos torcendo enquanto
mais um moreninho é abatido pelo M-16 de John Wayne, o Vietnã
em chamas na tela, que passe por seus ouvidos,
límpido, como uma promessa, antes de pregar o pôster
de Michael Jackson cintilante sobre o sofá, no
supermercado onde uma mulher miscigenada se
dispõe a acreditar que cada branco com nariz igual ao dela
é seu pai, que cante, brevemente, em sua boca,
e só depois a deite entre latinhas de tomate
& o macarrão, enquanto rola da sua mão
a vermelhíssima maçã, depois na cela onde o marido
fica olhando para a lua, ali sentado,
até se convencer de que deus não vai mais
recusar nenhuma hóstia, que acerte o queixo dele como um beijo
que esquecemos como dar um no outro, voando
de volta a 1968, na Baía de Ha Long: o céu
substituído pelo fogo, o céu para onde só olham os mortos,
que alcance o avô que agora trepa com
a camponesa grávida na traseira do seu jipe militar,
o seu cabelo loiro tremulando ao vendo de uma bomba de napalm, que
o prenda ao pó onde as suas filhas vão crescer,
com seus dedos em bolhas & Agente Laranja, que elas
rompam as fileiras verde-oliva, agarrem o nome pendurado
em seu pescoço, o nome que elas põem sobre as línguas
para aprender mais uma vez a dizer viva, viva, viva — mas se
não for possível nada mais, que eu possa criar esse raio da morte
como uma cega que costura de novo um pedaço de pele
no corpo da filha. Sim — que eu acredite que nasci
para rearmar este rifle, brilhante e bem lubrificado, como um verdadeiro
vietcongue, como as pegadas de fantasmas toldadas na chuva
enquanto me agacho entre os alvos — & rezo
para que nada se mova.
•
Ocean Vuong nasceu a 14 de outubro de 1988 no Vietnã. Mudou-se para os Estados Unidos em 1990. É autor de prosa e poesia e tem textos publicados em vários periódicos, como The New Yorker e The American Poetry Review. Céu noturno crivado de balas é o seu terceiro livro de poesia e o primeiro traduzido no Brasil. * Traduções de Regerio W. Galindo.
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