terça-feira, 9 de novembro de 2021

Três poemas de Anne Hébert

 


AMOR
 
Tu, carne da minha carne, manhã, meio-dia, noite, todas minhas
horas e minhas estações reunidas,
 
Tu, sangue do meu sangue, todas minhas fontes, o mar e minhas
lágrimas vertidas,
 
Tu, pilares da minha casa, meus ossos, árvore da minha vida,
mastros das minhas velas e toda a viagem ao mais profundo de mim,
 
Tu, nervo dos meus nervos, meus mais belos buquês de alegria,
todas as cores luzidias,
 
Tu, sopro do meu sopro, ventos e procelas, o ar livre
deste mundo me eleva como uma cidade de tela,
 
Tu, coração dos meus olhos, o mais amplo olhar, a colheita mais rica de
cidades e espaços, do fundo do horizonte renascidos.
 
Tu, gosto do mundo, tu, aroma dos caminhos molhados,
céus e marés na areia enleados,
 
Tu, corpo do meu corpo, minha terra, todas minhas florestas, universo
entornado entre meus braços,
 
Tu, a vinha e o fruto, tu, o vinho e a água, o pão e a mesa,
comunhão e conhecimento às portas da morte,
 
Tu, a minha vida, minha vida que se descerra, foge num passo lépido
em direção à aurora, tu, o instante e meus braços libertos,
 
Tu, o mistério retomado, tu, meu doce resto estranho,
e o coração que se lamenta em minhas veias como uma dor.
 
* Tradução de Núbia Hanciau.
 
 
VIDA DE CASTELO
 
É um castelo antigo
Sem mesa nem fogo
Poeira nem tapetes.
 
O perverso encantamento desses lugares
Está todo em seus espelhos polidos.
 
Aqui, o único ofício possível
Consiste em mirar-se dia e noite.
 
Lança tua imagem nas fontes rígidas
Tua mais rija imagem sem sombra nem cor.
 
Vê, esses espelhos são profundos
Como guarda-roupas
Há sempre uma morte que ali habita, sob a viga
E logo logo cobre o teu reflexo
Gruda em ti como uma alga
 
A ti se ajusta, franzino e nu,
Simulando o amor num frenesi amargo e lento.
 
 
NOITE
 
Noite
O silêncio da noite
Me abarca
Com copiosas correntes submarinhas.
 
Repouso no fundo da água muda e verde-mar.
Vislumbro o meu coração
Que fosforesce e se esvai
Como um farol.
 
Ritmo surdo
Código secreto
Não decifro um mistério sequer.
 
A cada lampejo
Fecho os olhos
Pela continuidade da noite
A perpetuidade do silêncio
Onde pereço.
 
* Traduções de Maria das Graças L. M. do Amaral
 
Anne Hébert nasceu no dia 1.º de agosto de 1916 em St. Catherine de Fossambault, Canadá. Escreveu prosa (romance, novela, conto), teatro e poesia. Neste último gênero destacam-se títulos como Les songes en equilibre (1942) e Le jour n’a d’égal que la nuit (1992). Morreu no dia 22 de janeiro de 2000 em Montreal.
 

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