VISÃO AÉREA
Um tanto
de felina, outro tanto
de ofídica.
Um perfil de estatueta de Tanagra,
como dizem os poetas.
Mas eu achei-a fluídica,
imponderável, quase etérea.
Talvez, para os estetas,
fosse a visão aérea...
O caso é que sorria, andava em passos leves,
com um chapéu de organdy
talhado em rosa branca.
De onde vinha? Não sei.
Eu apenas a olhei
uns três minutos breves.
o vestido com que a vi,
chic, em verdade,
dava-lhe um ar de bebê
que ainda vestisse bibe...
— vitrina humana que o rigor da moda exibe —
com o vestido que a vi,
julguei que ela ficava
dependurada contra as leis da gravidade...
As aulas são noturnas e o período letivo
é quando o inverno facilita aos alunos sair.
Aos grulhos que são ralhos as mães batráquias vendo a chuva
correm com a saparia infantil para a escola.
— lições bem decoradas ditas em rasgos de regougos.
Um velho sapo idealista professor de matemática,
que vive amando a Lua entre as ninfeias pelo charco,
pergunta em rouca sabatina
a tabuada aos estudantes.
E eles respondem como em coro:
8 + 8 = 18
de olhos perdidos nas estrelas
ruge em meio ao silêncio
alheio à aula e aos seus discípulos:
Stá errado!
DEU RATA…
nos suspiros gementes das guitarras,
veio o doce langor
de nossa voz,
a quentura carinhosa de nosso sangue.
das cubatas, das senzalas,
com ventres fecundos padreando escravos.
mas todo chicoteado de estrelas.
Teu leite que desenhou o Cruzeiro,
escorreu num jato grosso,
formando a estrada de São Tiago…
tatuando-te com pedras preciosas,
que deste festas de esmagar!
Tu, que criaste os filhos dos Senhores,
embalaste os que eram da Marquesa de Santos,
os bastardos do Primeiro Imperador
e até futuros Inconfidentes!
A tua seiva maravilhosa
sempre transfundiu o ardor cívico, o talento vivo,
o arrojo máximo!
Foste tu que na Bahia alimentaste o gênio poético
de Castro Alves? No Maranhão a glória de Gonçalves Dias?
Terias ungido a dor de Cruz e Souza?
ninando murucu-tu-tu
para os teus bisnetos de hoje…
cantando e sapateando no batuque,
correndo o frasco na macumba,
quando chega Ogum, no seu cavalo de vento,
varando pelos quilombos.
chupou teu sangue, Mãe Preta?
a Maria Tereza dos quitutes com pimenta e com dendê.
És, finalmente, a procriadora cor da noite,
que desde o nascimento do Brasil
te fizeste “Mãe de leite”…
que sugamos com avidez teus seios fartos
— bebendo a vida! —
Que nos honramos com o teu amor!
É a Páscoa do Silêncio,
com a hóstia da Lua Etérea…
Velhas, anosas mangueiras,
aconchegadas, taciturnas,
rezam sob o véu místico do luar…
o poeta, que partiu célere,
para o desejo aventureiro,
retorna, passos tardos,
em tédio e arrependimentos.
que se irmana à alma do Poeta,
a Cidade dorme, confeitada de luar…
que escalam o espaço,
absorto na majestade da amplidão,
caminha o Poeta pelas antigas avenidas,
procura a sombra luarina
dos jardins sem idílios,
transformados em parques urbanísticos.
procura os subúrbios proletários,
onde as humildes palhoças
têm apenas o pão da Lua Cheia…
Quando regressa,
traz a Mensagem da pobreza conformada…
deambula insone, fumando um triste cigarro,
e apita nervosamente.
Na Praça histórica,
abandonada, silente,
ante o céu azúleo e luminoso,
um chafariz vazio,
na impassível frialdade do mármore,
evoca o patriarcalismo colonial,
quando a Cidade nascia.
onde os líricos namorados
se iludem mutuamente,
jazem corpos abandonados
que ressonam rascantemente.
o Poeta prossegue,
enquanto as Horas alongam a Noite
e o casario burguês fechou as pálpebras,
para o falso e rico amor…
faz-lhe bem o sossego da Cidade,
na imensidão maior da Noite branca,
em que o Poeta se recolhe
para cismar e esquecer…
Bem-amadas como a Lua romântica,
inspiradoras e incompreendidas…
um sino acorda a madrugada.
Peregrinando, sonambulando,
o Poeta surpreende nos portais
amores que não têm leito para o prazer…
integrado na solidão reminiscente,
que é a Verônica da Cidade,
no seu cotidiano despertar.
escorraçam o Silêncio,
quando alvora a voz do sino,
como sentinela perdida…
dos remotos sonhos adolescentes…
na trepidação dos ruídos nevrosantes…
Asas que se recolhem.
Ocaso em mutações arcoirisadas.
Duas verdes pupilas, fúlguras, redondas,
à flor das águas bolem
e espiam por trás das árvores paradas…
Corta o rio dormente
trêmula retração que as pupilas retrata.
É quando a Iara vem, trazendo no olhar fulvescente,
sortilégios de sono, amores de sonho e de lenda,
do fundo abismal do rio…
flórea e tênue das águas… Emerge o corpo frio.
A Iara canta… Embala as saudades lendárias…
O remo para de remar!…
Olhos verdes de Iara… Assombramentos do Rio-Mar.
•
Bruno de Menezes nasceu a 21 de março
de 1893, em Belém. Sua vivência e interesse pela literatura começa na juventude
quando forma com amigos o grupo “Vândalos do Apocalipse”, mais tarde, “Peixe
Frito”, do qual fez parte nomes como Dalcídio Jurandir. Um ano depois da Semana
de Arte Moderna em São Paulo, funda o que viria ser um dos primeiros veículos do
Norte do país dedicado à arte modernista, a revista Belém Nova. Batuques,
seu quarto livro o integra entre os primeiros poetas que tematizaram a cultura
afro-brasileira. Além desse título publicado em 1931, escreveu ainda no mesmo gênero
Crucifixo (1920), Bailando no lunar (1924), Poesia (1931),
Lua sonâmbula (1953) e Onze sonetos (1960), dentre outros. Escreveu
ainda prosa (textos sobre folclore e cultura popular, novela e romance). Morreu
em Manaus a 2 de julho de 1963.
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