terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Três poemas de César Vallejo




ÁGAPE
 
Hoje ninguém veio perguntar alguma coisa;
nem nesta tarde ninguém me pediu nada.
 
Não vi sequer uma flor de cemitério
em tão alegre procissão de luzes.
Perdoa-me Senhor: morri tão pouco!
 
Nesta tarde todos, todos passam
sem nada me perguntar nem pedir nada.
 
E não sei o que esquecem e que fica
em minhas mãos tão mal, qual coisa alheia.
 
Saí até à porta,
tenho vontade de gritar a todos:
Se alguma coisa lhes falta, ela está aqui!
 
Porque em todas as tardes desta vida,
não sei que portas nos atiram na cara
e algo estranho se apodera da minha alma.
 
Não veio ninguém hoje;
e que pouco hoje nesta tarde morri!
 
 
XLIV
 
Este piano viaja para dentro,
viaja saltando alegremente.
Medita depois num repouso ferrado,
cravado com dez horizontes.
 
Avança. Sob túneis, arrasta-se,
mais adiante, sob túneis de dor,
sob vértebras que naturalmente fogem.
 
Outras vezes as suas trompas movem-se,
lentas ásias amarelas de viver,
movem-se como eclipse,
e catam em si pesadelos de insectos,
mortas já para o trovão, mensageiro dos génesis.
 
Piano escuro, a quem espias tu
com a tua surdez que me ouve,
com a tua mudez que me ensurdece?
 
Oh misteriosa pulsação.
 
 
LXI

Esta noite desço do cavalo,
diante da porta da minha casa, onde
me despedi com o cantar do galo.
Está fechada, ninguém me responde.
 
O banco em que a mamã alumiou
meu irmão mais velho, para ele selar
cavalos que eu já montara em pelo,
menino rude, por ruas e valados.
O banco em que deixei murchar ao sol
minha angustiada infância… E o luto
que emoldura esta porta?
 
Deus, na paz forasteira,
espirra, o bruto, como a chamar também;
fareja, batendo no empedrado. Depois, duvida, relincha
sacode a viva orelha.
 
O papá há-de estar acordado a rezar,
talvez pense que se fez tarde para mim.
Minhas irmãs, cantarolando as ilusões
singelas, buliçosas,
a trabalhar para a festa que aí vem,
não falta quase nada.
Espero, espero, o coração
um ovo em seu momento, que se fecha.
 
Numerosa família que deixamos
há pouco, ninguém hoje em vigília, e nem uma vela
pôs no altar para que voltássemos.
Chamo de novo, e nada.
Calamo-nos, rompemos em soluços e o cavalo
relincha, relincha mais ainda.
 
Todos estão a dormir para sempre,
e antes assim, que finalmente
meu cavalo põe-se a cabecear, cansado,
e, entre sonhos, a cada vénia, diz
que está bem, que está tudo muito bem.
 
 
César Vallejo nasceu em Santiago de Chuco, a 16 de março de 1892. Integrado às vanguardas do século XX, é considerado um dos mais importantes poetas hispano-americanos. O peruano começa sua vida literária com Los heraldos negros (1918) e na poesia publica ainda Trilce (1922) e Poemas humanos (1939). Também escreveu romance, conto, crônica, ensaio e teatro. Morreu em Paris no dia 15 de abril de 1938. 

* Traduções de José Bento

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