terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Quatro poemas de Julieta Barbara


 

DIA GARIMPO
 
Vestido limpo
Na água sabão
O azul caipira
Do céu burleta
Lavando o sol
Gosto de Alzira
De borboleta
Cheiro a amplidão
Pastava o gado
De girassol
Livre da canga
No capinzal
Papel colado
Flores de manga
Nuvens de sal
Suor bombacho
Trincando o céu
Alaga e alonga
A terra em cacho
Supina em baixo
Do meu chapéu
Gosto de Alzira
Sono araponga
 
 
VARIAÇÃO SOBRE O “PAI DO MATO”
 
No intervalo
Fomos festejar o bailarino
Que estava suando
Sem emoção
Disse que não estava nos seus bons dias
E queixou-se da casa vazia
Ah! — a casa estava vazia
 
Que diferença de atitude
Quando o teatro estava cheio
No intervalo
Fomos festejar o bailarino
Ele ficou emocionado
Disse que tinha a alma carregada de ritmos
Ah! sua alma estava carregada de ritmos
 
 
ADOLESCENTE

Um arrepio mal sentido no peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que devia descer pelas veias dos ombros
Enquanto o bafo de sua boca
Como um murmúrio
Palpasse minha cintura contraída
Que eu devia sentir
No enfraquecimento das pernas
Aconchegado no meu sexo indefeso
Nos bicos dos seios prometidos
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que devia passar como uma vibração
Do meu corpo para o espaço
E acender lantejoulas
E engolir a amplidão
Um arrepio mal sentido no peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que não teve arremessos
Minha cabeça é o prato de uma balança cheia de pesos
Em minhas mãos se debate
A certeza dos meus órgãos funcionando
Dos meus nervos funcionando
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Sem ruído
Monoplano
Que atingiria o leito macio
Das montanhas brancas
Amontoadas nas nuvens
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que teve que morrer
Como morrem os fuzilados
Sabendo que vão morrer
Sentindo a prisão da parede por trás
O ódio pela frente
A cabeça como o prato de uma balança cheia de pesos
Como morrem os fuzilados
Sabendo que vão morrer
Um arrepio mal sentido
No peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Gestando uma vida
Que se desdobraria em ondas de outras vidas
Se tornaria o mar
Engoliria todos os peixes
De lantejoulas
Minha cabeça é o prato de uma balança cheia de pesos
Entre a garganta e o coração
Um arrepio mal sentido
Uma espécie de frio
Eu quero a espada de fogo
Cavaleiro São Jorge
Eu quero a liberação
Salomé
Corta minha cabeça rente dos ombros
Meu corpo desarvorado
Alcançará o mar
Engolirá todos os peixes
De lantejoulas
Engolirá o espaço
Engolirá as estrelas
O céu de Cristo
Pregado numa cruz
E as lágrimas dos homens
 
 
A MORTE DO POETA
 
Duas coroas pisadas
Boiaram nas olheiras do caixão
Na sua carne lívida
O sol machucava
 
Cortando o choro literário das mulheres
Que o cadáver só conhecia de vista
Os oradores cuspiram a encomendação necrológica
No ventre da cova
Uma papoula desprendeu-se no meio dos vermes
“Foi poeta sonhou e amou na vida”
 
Para os olhos insensíveis
Das ilustrações
Os contornos mancharam desenhos
Massas próximas se distribuíram coloridas
Viam-se os dedos trançados sobre os ossos
As flores bordando a magreza humilhada
O enterro torcido sobre a morte
 
O cadáver exalou dores apodrecidas
 
Do cemitério
Nem uma cruz aflita
O único vestígio das sepulturas sem dono
Eram as chapas de alumínio
Que cabeceavam o sono eterno
Umas árvores sem nome
 
Iguais
Iguais
Iguais
Varavam no corpo nu de martírio
Seis pares de braços misericordiosos
“Foi poeta sonhou e amou na vida”
 
O sol exangue de seu estro sepultado
Vertia o último poente
As proporções da clemência
Ungiram a enormidade
Como uma papoula desprendida dos vermes
A poesia ilesa
Atingiu a aeronáutica
A sonda despencando
Os fios condutores
Dos caminhos cruzados
 
O lirismo sem voz
Voltou sob as patas do enterro capitalista
Esgotado o último disfarce
Quando a terra comeu para sempre a carne do poeta
 
Para aqueles que eram os esquecidos
Porque não sabiam ler
O pânico demorava o tempo
E crescia à medida que a cidade vinha ao seu encontro
 
Quiseram também ir no enterro rumoroso
Mas voltaram calados
Penetraram angustiados
Que não fora só de doença
 
Que não fora só de fome...
“Foi poeta sonhou e amou na vida”
Teriam eles a possibilidade
De aniquilar-se como o poeta?
 
Crescia o pânico
Quanto mais os homens esquecidos
Se apoderavam do pavor
Os animais pasmos
Pastavam
Nem diziam pelos olhos frios
De outra coisa se morre
A câmara lenta
Da angústia
Demorava a cidade
A sonda metrificada
 
Contrapunha no espaço
Hieróglifos
Contraponto de ritmos livres
 
De outra coisa se morre
Diziam os surpreendidos
Pelos passos enormes
 
Julieta Barbara nasceu em 1908 em Piracicaba, interior de São Paulo. Destacou-se como poeta com a publicação de seu único livro, Dia garimpo, em 1939. Nas letras, Barbara Guerrini também se dedicou à crônica escrevendo para o jornal carioca A manhã em 1941. Também produziu no campo das artes plásticas  pintura e desenho; parte desse segundo interesse aparece exposto nas composições que acompanham seu livro. Julieta Barbara morreu em 2005.
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário