LITANIAS DO JOVEM BONITO
I
A cigarra chama o inverno
— quando a cigarra canta
tudo no mundo clareia e para.
Lá o céu é só sereno
— se vens aqui o que encontras?
Chuva, nuvens, choro do inferno.
II
Eu sou o belo jovem
que chora todo o dia,
te peço, meu Jesus,
não me deixes morrer.
Jesus, Jesus, Jesus.
Eu sou o belo jovem
que sorri todo o dia,
te peço, meu Jesus,
ah, me deixes morrer.
Jesus, Jesus, Jesus.
III
Hoje é domingo,
amanhã se vai morrer,
hoje me visto
de seda e de amor.
Hoje é domingo,
nos campos crianças
de frescos pés saltam
leves nos sapatos.
Cantando ao espelho,
cantando me penteio.
Ri em meu olho
o Diabo pecador.
Tocai, sinos meus,
levai-o para trás!
“Tocamos, mas tu, o que vês
cantando pelos campos?”
Vejo os sóis
de mortas estacoes,
vejo a chuva,
as folhas, os grilos.
Vejo meu corpo
de quando fui menino,
os tristes domingos,
a vida perdida.
“Hoje te vestem
a seda e o amor,
hoje é domingo
amanhã, a morte.”
COMUNICADO À ANSA (RECIFE)
Como é notícia de jornal, começa
com um pouso de emergência no Recife.
Aqui chove; no aeroporto em construção, passando
em frente a um grupo de operários que trabalham, olhos
se erguem para os passageiros
É assim que o Brasil me saúda
E retribuo a saudação com meu coração burguês
que já sabe o que vai receber por aquilo que dá.
Nestes bancos desolados se espera um novo voo, de emergência,
Não há nada de novo: eu sei de que fala
O corpo lavado e a melancolia
Minha companheira com sua ansiedade, no ar tépido da chuva,
e sua sede de graça: cegada para sempre —
este peso que nós burgueses trazemos no peito
por tudo o que não sabemos e a necessidade de elogios,
de modo que a vida nos cobre como uma veste úmida e suja,
e os raros momentos de felicidade logo se tornam lembranças
de que nos vangloriamos; e o peso aumenta
as feridas de um insucesso nos obrigam a calmas consoladoras,
a cômicos dar de ombros
a hilaridades esnobes,
ali sentados naqueles bancos desolados do Recife
VERSOS FINOS COMO TRAÇOS DE
CHUVA
É preciso condenar
severamente quem
crê nos bons sentimentos
e na inocência.
É preciso condenar
com igual severidade quem
ama o subproletariado
sem consciência de classe.
É preciso condenar
com a máxima severidade
quem ouvi em si e expressa
sentimentos obscuros e escandalosos.
Estas palavras de condenação
começaram a ressoar
no coração dos Anos Cinquenta
e continuam até hoje.
Entretanto a inocência,
que efetivamente havia,
começou a perder-se
em abjuras, corrupções e neuroses.
Entretanto o subproletariado,
que efetivamente existia,
terminou se transformando
em reserva da pequena burguesia.
Entretanto os sentimos
que eram por natureza obscuros
foram todos investidos
no lamento das ocasiões perdidas.
Naturalmente, quem condenava
não se deu conta de tudo isso:
e continua rindo da inocência,
negligenciando o subproletariado
e declarando sentimentos reacionários.
Continua indo da casa
pro escritório, do escritório pra casa,
ou ensinando literatura:
está feliz com o pregressismo
que lhe faz parecer sagrado
o dever de ensinar aos domésticos
o alfabeto das escolas burguesas.
Está feliz com o laicismo
que considera é mais que natural
que os pobres tenham casa,
casa e tudo o mais.
Está feliz com a racionalidade
que o faz praticar um antifascismo
gratificante, elevado
e sobretudo muito popular.
Que tudo isto seja banal
nem lhe passa de longe pela mente:
com efeito, que seja assim ou assado
não lhe dá nenhum proveito.
Aqui fala um Sócrates mísero e
impotente
que sabe pensar e não filosofar,
mas que no entanto se orgulha
não só de ser conhecedor
(o mais exposto e esquecido)
das mudanças históricas, mas também
de nelas estar direta e
desesperadamente implicado.
A cigarra chama o inverno
— quando a cigarra canta
tudo no mundo clareia e para.
— se vens aqui o que encontras?
Chuva, nuvens, choro do inferno.
Eu sou o belo jovem
que chora todo o dia,
te peço, meu Jesus,
não me deixes morrer.
que sorri todo o dia,
te peço, meu Jesus,
ah, me deixes morrer.
Hoje é domingo,
amanhã se vai morrer,
hoje me visto
de seda e de amor.
nos campos crianças
de frescos pés saltam
leves nos sapatos.
cantando me penteio.
Ri em meu olho
o Diabo pecador.
levai-o para trás!
“Tocamos, mas tu, o que vês
cantando pelos campos?”
de mortas estacoes,
vejo a chuva,
as folhas, os grilos.
de quando fui menino,
os tristes domingos,
a vida perdida.
a seda e o amor,
hoje é domingo
amanhã, a morte.”
com um pouso de emergência no Recife.
Aqui chove; no aeroporto em construção, passando
em frente a um grupo de operários que trabalham, olhos
se erguem para os passageiros
É assim que o Brasil me saúda
E retribuo a saudação com meu coração burguês
que já sabe o que vai receber por aquilo que dá.
Nestes bancos desolados se espera um novo voo, de emergência,
Não há nada de novo: eu sei de que fala
O corpo lavado e a melancolia
Minha companheira com sua ansiedade, no ar tépido da chuva,
e sua sede de graça: cegada para sempre —
este peso que nós burgueses trazemos no peito
por tudo o que não sabemos e a necessidade de elogios,
de modo que a vida nos cobre como uma veste úmida e suja,
e os raros momentos de felicidade logo se tornam lembranças
de que nos vangloriamos; e o peso aumenta
as feridas de um insucesso nos obrigam a calmas consoladoras,
a cômicos dar de ombros
a hilaridades esnobes,
ali sentados naqueles bancos desolados do Recife
severamente quem
crê nos bons sentimentos
e na inocência.
com igual severidade quem
ama o subproletariado
sem consciência de classe.
com a máxima severidade
quem ouvi em si e expressa
sentimentos obscuros e escandalosos.
começaram a ressoar
no coração dos Anos Cinquenta
e continuam até hoje.
que efetivamente havia,
começou a perder-se
em abjuras, corrupções e neuroses.
que efetivamente existia,
terminou se transformando
em reserva da pequena burguesia.
que eram por natureza obscuros
foram todos investidos
no lamento das ocasiões perdidas.
não se deu conta de tudo isso:
e continua rindo da inocência,
negligenciando o subproletariado
Continua indo da casa
pro escritório, do escritório pra casa,
ou ensinando literatura:
que lhe faz parecer sagrado
o dever de ensinar aos domésticos
o alfabeto das escolas burguesas.
que considera é mais que natural
que os pobres tenham casa,
casa e tudo o mais.
que o faz praticar um antifascismo
gratificante, elevado
e sobretudo muito popular.
nem lhe passa de longe pela mente:
com efeito, que seja assim ou assado
não lhe dá nenhum proveito.
que sabe pensar e não filosofar,
mas que no entanto se orgulha
não só de ser conhecedor
das mudanças históricas, mas também
de nelas estar direta e
desesperadamente implicado.
•
Pier Paolo Pasolini nasceu a 5 de
março de 1922 em Bolonha. Sua estreia na literatura acontece com a poesia,
gênero que cultivará ao longo de sua carreira, marcada ainda pelo trabalho na
prosa (ensaio, novela, romance), no teatro e nas artes plásticas, sobretudo no
cinema. Foi brutalmente assassinado na madrugada do dia 1º para 2 de novembro
em 1975, em Roma.
* Traduções de Maurício Santana Dias
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