COISA POUCA NA VERDADE
Não é muito o que tenho para te
dizer:
quando falo dele, estremeço.
Coisa pouca,
na verdade.
A DOR
Dobrei as suas camisas com todo o
cuidado
e esvaziei a gaveta da mesinha de
cabeceira.
Dada a dimensão da minha dor,
li Marguerite Duras,
que avessa e doce
tecia um xaile para o seu amado.
Ao quinto dia,
Abri as cortinas.
A luz caiu sobre a coberta manchada
de gordura,
o chão cheio de restos,
a moldura escamada da porta.
Tanta dor,
por coisas tão feias.
Olhei uma vez mais a sua cara de
fuinha
e atirei tudo pela conduta do lixo
abaixo.
A vizinha,
alarmada com tal volume de lixo,
quis saber se estava tudo bem
comigo.
Dói, disse-lhe eu.
Na minha caixa de correio, um
bilhete anónimo:
“quem tem um amor
que dele cuide
que dele cuide
e não suje a conduta do lixo da
comunidade.”
A HORA DOS PROSTITUTOS E CÃES
NÉSCIOS
A esta hora
não se sabe o que fazer
e é sempre a esta hora, a hora dos
prostitutos e cães
néscios que eu relembro. Todos os
dias, este tempo
perdido, sabes, a cara entre as mãos,
as pernas enco-
lhidas, a viva imagem da dor na tarde
lerda. Imóvel
entre escombros, imune aos desastres,
não podia ser
de outra forma.
E é esta mesma hora
a
de hoje
a
que virá todos os dias
que me fode.
•
Miyó Vestrini (Marie-José Fauvelle
Ripert) nasceu em Nimes, França a 27 de abril de 1938. Veio com a família ainda
criança morar nos Andes venezuelanos, onde passou o resto da sua infância. Ainda
jovem passou a se dedicar ao jornalismo cultural e integrou vários grupos de
escritores; trabalhou para a imprensa venezuelana na Itália, conduziu programas
de rádio, dirigiu cadernos de cultura em jornais como El Nacional e
escreveu prosa e poesia, gênero este no qual se destaca como importante nome da
literatura de vanguarda em língua espanhola. Miyó suicidou-se a 29 de novembro
de 1991, em Caracas. Deixou livros como Las historias de Giovanna
(1971), El inverno próximo (1975), Pocas virtudes (1986), Valiente
ciudadano (1994) e Es una buena máquina (2014).
* Traduções de Miguel Cardoso.
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