A MORTE
Não inventemos suas águas. Nem intentemos inabilmente adivinhar seus veios deliciosos, seus escondidos remansos. Não adianta intimidades com ela. Devolvâmo-la à sua antiga e verdadeira presença. Venerêmo-la com as preces de outrora e tornarão a conhecer-se suas intrincadas rotas, voltará a encantar-nos sua espessa maranha de cidades cegas onde o silêncio derrama sua líquida essência. As grandes aves regressarão a presidir sobre nossas cabeças e suas sombras fugazes apagarão suavemente nossos olhos. Desnudo o rosto, cingida a pele aos ossos fundamentais que sustentaram as feições, a confiança na morte volverá para alegrar nossos dias.
AS VIAGENS
É preciso lançar-nos à descoberta de novas cidades. Generosas raças nos esperam. Os pigmeus meticulosos. Os sebentos e imberbes índios da selva, assexuados e lisos como as serpentes dos pântanos. Os habitantes das mais altas mesetas do mundo, assombrados ante o tremor das neves. Os frágeis habitantes das geladas extensões. Os condutores de rebanhos. Os que há séculos vivem na metade do mar e que ninguém conhece porque viajam sempre em direção contrária à nossa. Deles depende a última gota de esplendor.
Ainda estão por descobrir importantes regiões da terra: os grandes tubos por onde respira o oceano, as praias onde morrem os rios que não têm destino, os bosques onde nasce a madeira de que é feita a garganta dos grilos, o lugar onde vão morrer as borboletas escuras, de grandes asas lanudas, com o acre matiz da erva seca do pecado.
Buscar e inventar de novo. Ainda é tempo. Bem pouco, é verdade, mas é preciso aproveitá-lo.
O DESEJO
Temos que inventar uma nova solidão para o desejo. Uma enorme solidão de estreitas margens onde se espalhe à vontade o rouco estrépito do desejo. Abramos, novamente, todas as veias do prazer. Que jorrem seus altos esguichos não importa aonde. Nada foi feito ainda. Mal tínhamos começado a andar quando alguém parou para arranjar-se as vestes e todos paramos juntos. Sigamos a marcha. Há leitos secos por onde ainda podem viajar águas magníficas.
Recordai os animais de que falávamos. Podem ajudar-nos antes que seja tarde e volte a charanga a enturvar o céu com sua música estridente.
CADA POEMA
CADA POEMA
Cada poema um pássaro que foge
da região marcada pela praga.
Cada poema uma roupagem de morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera mortuária dos vencidos.
Cada poema um passo para a morte,
Cada poema um passo para a morte,
uma falsa moeda de resgate,
tiro certeiro no meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio
cujas águas dormidas perambulam
dos velhos bairros para as cercanias
onde o dia prepara suas fogueiras.
Cada poema um rígido contato
do que repousa na pedra dos morgues,
ávido anzol que sôfrego percorre
o liso limo das frias sepulturas.
Cada poema um náufrago desejo,
ranger de mastros, estalar de enxárcias
no rude andaime que sustenta a vida.
Cada poema um o estrondo do derrame,
sobre o gelado ronco do oceano,
da branca estrutura do velame.
Cada poema invadindo e esgarçando
a triste teia de aranha do tédio.
Cada poema, de um cego sentinela,
o santo e senha de sua desventura
num grito à noite escura e sem resposta.
Água de sonho, nascente de cinza,
pedra porosa de entre matadouros,
tronco encoberto pelas sempre-vivas,
metal que dobra pelos condenados,
óleo de extrema-unção de duplo gume,
sudário cotidiano do poeta,
cada poema esparge sobre o mundo
a amarga semente da agonia.
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Álvaro Mutis nasceu em Bogotá em 1923. Apenas dois anos depois, a família mudou-se para Bruxelas, onde fez toda suas primeiras letras, educando-se em francês. O retorno para a Colômbia acontece em 1939 e em 1942 começa a trabalhar no rádio, passando para o periódico Vida como chefe de redação. Sua estreia na literatura é com La balanza, livro publicado com Carlos Patiño, em 1948. Quatro anos a seguir, sai Los elementos del desastre, ocasião quando já atuava na publicidade, mais tarde nas relações públicas, funções que o levaram a ir viver no México. Antes da prisão de um ano e meio, ainda publicou Reseña de los hospitales de ultramar e na saída do cárcere havia escrito Cuatro relatos, Los trabajos perdidos e Diario de Lecumberri. A vida dedicada à poesia só o alcançaria depois de viajar a América Latina como funcionário de distribuidoras estadunidenses para a venda séries televisivas. Alguns dos vários reconhecimentos recebidos por sua obra foram os prêmios Príncipe de Astúrias e Rainha Sofía de Poesia. Álvaro Mutis morreu na Cidade do México em 2013.
* Traduções de Geraldo Holanda Cavalcanti
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