terça-feira, 29 de setembro de 2020

Cinco breves poemas de Sandro Penna

 



I
Talvez a juventude apenas seja isto:
sem arrependimento amar sempre os sentidos.

II
Este corpo que aperto (e me aperta)
tem um sabor de estrelas e de lodo.
E eu não sei quem agora me tinge
(profundíssimo jogo) de vermelho
as estrelas.

III
Era no cinema, onde as portas
se abrem e fecham continuamente.
Àquele rumor ela pensou
que ele voltasse
mas não voltou.

IV
Fazer do verde prado
um jogo proibido.
Já o tenho tentado.
Sem o ter conseguido.

V
“Poeta exclusivo do amor”
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?

Sandro Penna nasceu a 12 de junho de 1906, em Perúgia; uma vez concluído os estudos básicos na escola comercial, foi para Roma, onde passou quase toda a sua vida. Foi colaborador de algumas revistas do seu tempo, como Letteratura e Il Fontispizio. Seu primeiro livro de poemas foi publicado em Florença, Poesie (1939); a estes se seguiram títulos como Appunti (1950) e Una strana gioia di vivere (1956), Croce e delizia (1958), Stranezze (1976). Morreu a 21 de janeiro de 1977.
 
* Traduções de David Mourão-Ferreira

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Dois poemas de Joaquim Namorado




POETA
 
A poesia é uma máquina
de produzir entusiasmo
e é preciso que os versos sejam verdadeiros
na vida dos poetas
como a tua mão erguida
sobre os anos futuros
quando o próprio bronze das estátuas se cobrir
do verdete do esquecimento
e das urtigas
entre as ruínas de um passado morto
e as pequenas plaquetes dos sentimentos pobres
dos líricos delírios
das doidas metáforas sem sentido
louvadas pela crítica
só tiverem o arqueológico encanto
de um cabelo de Ofélia.
 
Então
os teus versos estarão na primeira fila dos pioneiros
cobertos de cicatrizes
porque fizeram todo o caminho do tempo
multiplicados por milhões de vozes
pela alta potência dos alto-falantes
como uma bandeira erguida
sobre os anos futuros.
 
 
LIBERDADE
 
Quem marca uma fronteira
àquela nuvem
a asa que é a sua sombra
onde mora?
 
Sob as mordaças
calam-se as palavras
mas ninguém te cala
pensamento.
 
Quem manda à semente
não germines
ao fruto dela
que o não seja?
 
Amarram-se os pulsos
com algemas
mas ninguém te amarra
pensamento.
 
Quem impõe ao dia
que não nasça
ao sol que é a sua fonte
que não brilhe?
 
Fecham-se as janelas
com tapumes
mas ninguém te cega
pensamento.
 
Quem diz ao amor
é impossível
à lembrança que é seu laço
que o não seja?
 
Separam-se os amantes
na distância
ninguém te roubará
meu pensamento.
 
Joaquim Namorado nasceu a 30 de junho de 1914, em Alter do Chão, Alentejo, Portugal. Sua presença na cena literária em país está circunscrita no âmbito do Neorrealismo. Colaborou com as revistas Seara novaSol nascente e Vértice ― importantes periódicos os autores desta estética. Como poeta, estreou com Aviso à navegação (1941); este livro foi seguido de Incomodidade (1945) e A poesia necessária (1966). Morreu em Coimbra a 29 de dezembro de 1986.
 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Três poemas de Billy Collins





OS MORTOS

Os mortos estão sempre nos observando, dizem,
enquanto calçamos os sapatos ou fazemos um sanduíche,
olham pelo fundo de vidro dos barcos do céu
enquanto remam lentamente pela eternidade.

Veem o topo de nossas cabeças mexendo embaixo na terra,
e quando deitamos num campo ou sofá,
drogados talvez pelo zunido de uma tarde quente,
pensam que voltamos os olhos para eles,

o que os faz suspender os remos e calar
e esperar, como pais, que fechemos nossos olhos.


BUDAPESTE

Minha caneta se move pela página
como o focinho de um estranho animal
em forma de braço humano,
vestido na manga de um amplo suéter verde.

Eu o observo farejando o papel sem cessar,
atento como um forrageador qualquer que nada tem
em mente senão larvas e insetos
que lhe permitam viver mais um dia.

Quer apenas estar aqui amanhã,
vestido, talvez, na manga de uma camisa xadrez,
nariz enfiado na página,
escrevendo mais algumas linhas zelosas

enquanto olho pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade em que nunca estive.


CONVERSÃO

Gostaria de passar o dia na encosta
de uma montanha, ouvindo uma parábola
sobre uma ovelha perdida ou um parreiral arruinado.

Por meses minha única companheira seria esta história,
e quanto mais a contasse para mim mesmo,
mais claro tudo se tornaria.

Por fim, tiraria meu capacete de opiniões
e andaria pelas ruas da cidade
mostrando o cogumelo moreno e macio de minha nova cabeça.

Repetiria a história para pequenos grupos de homens,
fazendo desenhos na areia com um bastão.
Eu os deixaria murmurando em círculo.

E tarde da noite quando o vento frio encontrasse
as frestas de minha casa,
agitando o toco de vela perto de minha cama,

a língua da chama recitaria a história
e todas as sombras do meu eu antigo
tremeriam no teto e nas paredes de pedra.

Billy Collins nasceu a 22 de março de 1941, em Nova York. Autor de vasta obra literária distinguida em vários. Alguns dos livros são Questions About Angels (1991), Picnic, Lightning (1998), The Art of Drowning (1995), Ballistics (2008), Horoscopes for the Dead (2011). O segundo título citado foi o que o colocou em destaque nos círculos literários em país.

* Traduções de Maria Lúcia Milléo Martins.


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dois poemas de Pablo de Rokha

 


GÊNIO E FIGURA
 
a Winétt
 
 
Sou como o fracasso total do mundo, oh Povos!
O canto frente a frente ao próprio Satanás,
dialoga com a ciência tremenda dos mortos,
e minha dor jorra de sangue sobre a cidade.
 
Meus dias ainda são restos de enormes móveis velhos,
essa noite “Deus” chorava entre mundos que vão
assim, minha menina, sozinhos, e tu dizes “te amo”,
quando falas com “teu” Pablo, sem nunca me ouvir.
 
O homem e a mulher têm cheiro de tumba;
meu corpo cai sobre a terra bruta
como o caixão amadeirado do infeliz.
 
Inimigo total, uivo pelos bairros
um espanto mais bárbaro, mais bárbaro, mais bárbaro
que o uivo de cem cães levados a morrer.
 
 
ESTÉTICA
 
1
O poema, como o cadeado, deve ser fechado; o poema, como a flor, ou a mulher, ou a cidade, é a entrada do homem; o poema, como o sexo, ou o céu.
 
2
Que o canto nunca se pareça com nada, nem com um homem, nem com uma alma, nem com um canto
 
4
O que canta a canção? Nada. A canção canta, a canção canta, não como o pássaro, mas como o canto do pássaro.
 
5
Certamente, ardem grandes mares vermelhos, e um sol de pedra, preto, por exemplo, aumenta a solidão astronômica com seu enorme fruto duro, talvez a terra seja um grande cristal triangular, outra vida e outro tempo gravitam; crescem, demonstram sua presença, afixados ​​à arquitetura que canta sua ordem inédita.
 
6
Colho um tomate, adquiro a velha moeda de outono, pego um cinema, vou organizando aquele beijo e aquele verso aninhado naqueles enormes cílios.
 
8
Construção de intuições? Construção de imagens, sim, construção de imagens, que são produtos quimicamente puros do não-inconsciente.
 
10
Escolha qualquer material, sim, qualquer material; porém, qualquer material determina a biologia do poeta, diagnostica-o; escolha qualquer material, como quem escolhe estrelas entre minhocas...
 
11
Porque existe um material autêntico, como a azeitona do solteiro, a torta de casado, ou o mesmo que o vinho dos dias chuvosos, que é o violão do calendário, e um material de fraude, de escárnio, que lembra as locomotivas no templo, o soldado que seduz com a espada as garças claras, gemendo por dentro aquelas violetas fartas de tempo e os pianos sem aura, a figueira que produz lírios.
 
12
Mas você trabalha exatamente com barro e com sonho...
 
13
Só a felicidade da andorinha depende da primeira gota d'água...
 
14
Quando Deus ainda estava azul dentro do homem...
 
16
Deixe o poema te fazer rir e chorar como uma loira ou um lindo cavalo.
 
17
E, além disso, que ele ria sozinho e chore sozinho, e chore sozinho como a mais morena das colegiais, tirando a blusa.
 
18
A canção, como o sonho, deve ser cruzada com larvas.
 
19
A música, como o mundo.
 
20
A música, como o gênio, tem que criar atmosfera, temperatura, medida do universo, ambiente, luz, que irradie de sóis pessoais.
 
21
Meio a meio da poesia, Tu, o mesmo que sexo, meio a meio.
 
Pablo de Rokha nasceu a 17 de outubro de 1894, Lincatén. Mais tarde, a expulsão do seminário em Talca, onde foi estudar, oportunizou a se mudar para Santiago, onde concluiu seus estudos, formou amizade com outros intelectuais da época e iniciou sua carreira literária, primeiro pelo ofício de jornalista em periódicos como La razón e La mañana; seus primeiros poemas saíram na revista Juventud e o primeiro livro de poesia, resultado do sentimento de que havia falhado em seus objetivos, aparece em 1916 ― Versos de infancia. Transitou por várias cidades do interior do Chile só regressou a Santiago em 1949 para acompanhar a esposa Winétt de Rokha num tratamento de câncer; a morte dela foi marcada na elegia “Fuego negro” e abriu um período de eventos trágicos na família, incluindo a morte de um filho por overdose e o suicídio de outro, três episódios que o afetaram profundamente ao ponto de tirar a própria vida a 10 de setembro de 1968. Juntamente com Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Gabriela Mistral é considerado um dos pilares da poesia chilena.
 
* Traduções de Pedro Fernandes

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Quatro poemas de Fernando Moreira Salles




NAVEGANTE

hoje
ergo velas
e fixo o lastro
à minha quilha

a proa incauta
vou, sem luzes
ao liso horizonte
do amanhecer

não largo amarras
desta feita
pois nem sequer
soube atá-las

não sei dos astros
pro meu sextante
e nem sereias
por estes mares

mas posso, ainda
olhar as ondas
viver o vento
e a espera


DO MAR

A lembrança
nasce
no quieto horizonte
como ondas
de outras manhãs

dicção de espuma
esperanto
trilha e compasso
do Posto Três


ABISMO

Esse nada
iníquo
todo meu


ÓBVIO

cada dia
resmungo
não ter tempo

sei 
o tempo
é que me tem

 
Fernando Moreira Salles nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Publicou os livros Memorando (1993), Ser longe (2003), Habite-se (2005), A chave do mar (2010) e Diário de Porto Pim (2020).